10 de mai. de 2010

A Comuna dos Trabalhadores

A Comuna de Paris de 1871 foi o poder revolucionário que governou aquela cidade durante o curto período de 18 de março a 28 de maio daquele ano. Apesar de ter durado apenas 72 dias, a Comuna é um episódio muito importante e discutido.

No simpósio que o Cemarx (Centro de Estudos Marxistas do Ifch), e a CDC (Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural) realizaram no mês de maio, em comemoração aos 130 anos da Comuna de Paris, diversos aspectos relativos àquele episódio e às suas conseqüências foram discutidos. Um tema, contudo, interessou sobremaneira os participantes. Refiro-me à discussão mais geral sobre a natureza da Comuna de Paris, discussão que é, ao mesmo tempo, teórica, historiográfica e política.
Eco do século XVIII ou prenúncio do século XX?
A tradição socialista apresentou a Comuna de Paris como o primeiro governo operário da história. Essa caracterização fora feita pelo próprio Karl Marx no calor dos acontecimentos, em textos reunidos posteriormente num livro que se tornou célebre intitulado A Guerra Civil na França. Marx era teórico e dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), cuja seção francesa teve papel destacado na revolução e no governo da Comuna de Paris. Não se pode ignorar o fato de que a caracterização da Comuna como um governo operário tem conseqüências políticas. Nas ciências humanas, é possível ser objetivo, mas não é possível ser neutro. As conseqüências da tese de Marx são claras. Se a Comuna foi o primeiro governo operário, isso pode significar que, no final do século XIX, a classe operária  seria uma “classe social ascendente”, teria demonstrado ter condições de elaborar um programa político próprio, organizar-se em torno dele, e assumir o governo da “capital do mundo”. É compreensível que essa análise viesse a receber boa acolhida no movimento socialista.

Deixando de lado a literatura panfletária, podemos dizer que apenas um século depois, na década de 1960, começou a se desenvolver uma outra caracterização da Comuna de Paris. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para “desconstruir” o “mito socialista” da Comuna. Surgiu o debate: “Comuna-crepúsculo” ou “Comuna-aurora”? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século XIX e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da “revolução-crepúsculo” ter sido muito bem aceita entre os liberais.

Estamos sugerindo que cada qual deve escolher, de acordo com suas preferências políticas, a tese que mais lhe convém? Seguramente esse não seria um bom procedimento para os historiadores e cientistas sociais. É necessário ter consciência das conseqüências políticas de cada tese em presença, dentre outras razões, para poder controlar os efeitos de nossas preferências políticas na discussão de um tema que é historiográfico. Pois bem, nós entendemos que a Comuna de Paris foi sim a primeira experiência de um governo operário e, como tal, uma “revolução-aurora”, anunciadora do movimento operário e das revoluções que iriam mudar a história dos século XX. Por que pensamos assim? Por que consideramos que a análise de Marx resistiu à pesquisa historiográfica contemporânea?
Insurreição e governo operário

Os homens e mulheres que fizeram a Comuna de Paris eram de extração social operária e vinham se organizando em torno de idéias que tendiam ao socialismo.
Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte  desses assalariados trabalhava em pequenas empresas,  mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial – a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o II Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.
Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris que reunia então cerca de 40.000 membros. Essa massa operária realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela “plebe urbana”. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do II Império, a sua “escola de socialismo”.
Os historiadores Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux origines de la Commune - le mouvement desenvolvimento réunions publiques à Paris 1868-1870, usando uma documentação inédita formada por copiosos relatórios policiais, fizeram um estudo importante e detalhado das reuniões públicas do período de crise do regime político imperial. Esse estudo mostra que a oposição operária e popular ao II Império já era forte antes do desastre da Guerra Franco-Prussiana de 1870. Mostra também que o conteúdo político e ideológico dessa oposição iam muito além do republicanismo democrático-burguês. A igualdade sócio-econômica, a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, a instauração da propriedade coletiva e a utilização da ação revolucionária para alcançar esses objetivos eram temas dominantes nos salões de reuniões dos bairros populares de Paris. Vê-se que se trata de um programa coletivista, que deixou para trás o igualitarismo de pequeno proprietário (= dividir a propriedade privada) típico dos sans-culottes do século XVIII. Esses salões de reuniões públicas iriam, logo após a queda do II Império em setembro de 1870, dar origem aos clubes operários e populares, que formariam uma rede de organizações de massa dos trabalhadores de Paris. Foi essa massa operária que fez a revolução de 1871.
O perfil sócio-econômico dos dirigentes de organismos de base da Comuna, dos militantes e dos combatentes prova a afirmação acima. A presença do trabalhador manual é amplamente majoritária, sendo que os novos setores tipicamente operários (construção civil, metalurgia, diaristas sem especialização) têm uma presença bem superior ao seu peso na população ativa de Paris. Foram presos pelas tropas de Versalhes mais de 35.000 parisienses que participaram da Comuna. Dentre esses, mais de 5.000 eram operários da construção civil, mais de 4.000 eram diaristas sem especialização, outros 4.000 eram operários metalúrgicos, e milhares de outros eram operários de diferentes setores econômicos. Ao todo, cerca de 90% dos prisioneiros eram de origem operária e popular. Chama atenção a participação dos trabalhadores que compunham o moderno operariado de então. Os operários da construção civil, metalúrgicos e diaristas sem especialização representam 39% dos prisioneiros e 45% do contingente de condenados à deportação. Esse levantamento foi feito pelo próprio Jacques Rougerie, o historiador que iniciara a “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna, quinze anos após ter lançado seu primeiro livro sobre o tema. Após essa nova pesquisa, Rougerie reviu, sem o dizer, sua análise anterior da Comuna de Paris. Afirmou, após o exame dos dados, que a Comuna foi a “revolução da Paris do trabalho” (Jacques Rougerie, La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997, p.102).
Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris.
O órgão que comandou a insurreição de 18 de março de 1871, dando origem à Comuna de Paris, foi o Comitê Central da Guarda Nacional. Esse comitê era composto por 38 delegados eleitos nos bairros de Paris, sendo que 21 desses delegados eram operários; cerca vinte deles eram filiados à seção francesa da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) e às Câmaras Sindicais de Paris. O órgão político maior da Comuna de Paris, o Conselho da Comuna, eleito em 26 de março, oito dias após a insurreição, também era composto por uma maioria de operários e de filiados à Associação Internacional dos Trabalhadores e às Câmaras Sindicais. Esse Conselho contava, nominalmente, com 79 membros, dos quais apenas cerca de 50 compareciam às sessões. Nada menos que 33 dos conselheiros eleitos eram operários; o restante eram intelectuais, pequenos proprietários e profissionais liberais. Jacques Roguerie, na obra citada mais acima, calcula que a maioria do Conselho da Comuna - cerca de 40 de seus membros - pertencia à AIT e às Câmaras Sindicais. O Conselho da Comuna era um conselho de trabalhadores. Ao lado do Conselho da Comuna, a assembléia eleita pelos habitantes de Paris, operava o “braço executivo” da revolução, as “comissões ministeriais”. Nesse organismo, a componente proletária, se não domina como nos demais, pelo menos é marcante. Logo abaixo das “comissões ministeriais”, estão os grandes serviços públicos e de infraestrutura, onde os operários de Paris também tiveram atuação destacada.
Um governo socialista?
Podemos afirmar, portanto, que a composição social dos combatentes de base e dos dirigentes da Comuna de Paris foi marcadamente operária. Não eram apenas operários. Os profissionais liberais,  pequenos proprietários, lojistas e artesãos, que eram muito numerosos na população de Paris, tiveram, como indicamos de passagem, participação importante nos órgãos de governo da Comuna. Aliás, Marx fala em “governo essencialmente operário” e não em governo operário sem mais. Continuando. Pelos dados apresentados, também é legítimo dizer que os operários estavam forjando uma concepção de mundo anticapitalista na conjuntura da crise do II Império e se valendo da extraordinária experiência revolucionária dos trabalhadores de Paris. Essas duas constatações são fundamentais, tendo em vista a atual operação de “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna. Mas elas não encerram a questão. Pois resta saber o que foi a política implementada pela Comuna de Paris. Ela foi simplesmente uma política republicana burguesa? Uma política de reformas sociais? Uma política socialista?
Os communiards lutaram pela “república social”, tomaram diversas medidas de proteção ao trabalho e à população pobre, mas apenas uma que prenunciava uma economia de tipo socialista: decretaram que toda fábrica abandonada pelo proprietário - fenômeno comum em tempo de revolução – ficaria sob controle dos seus operários. Mas isso é pouco para afirmar que o governo da Comuna foi socialista. O grande historiador Ernest Labrousse insistiu, num debate entre os historiadores franceses por ocasião do centenário da Comuna de Paris, num ponto importante: nenhum documento da Comuna apresenta o socialismo como objetivo de governo. Karl Marx, cuja tese sobre a natureza operária da Comuna é o motivo de toda essa discussão historiográfica, escrevendo cerca de dez anos após a Comuna de Paris, observou, em carta a um correspondente, que a maioria dos dirigentes da Comuna de Paris não era socialista. Alguns autores afirmam que Marx estaria, nessa observação, revendo a análise que fizera no já citado Guerra Civil na França, obra que teria sido escrita num momento de entusiasmo e com objetivos políticos. Nós pensamos que não se trata disso. Marx afirmou em Guerra Civil na França que a Comuna foi a primeira experiência de um governo operário, mas não disse que ela foi um governo socialista. Isso ela não foi - e dificilmente poderia sê-lo.
Não se pode perder de vista um fato elementar: o objetivo imediato da Comuna de Paris foi depor um governo considerado de traição nacional. Por temor ao proletariado de Paris, esse governo aceitara uma paz forçada com a Prússia, paz que restringia a soberania da França e mutilava o seu território. A Comuna tinha pela frente, então, uma tarefa nacional e democrática, que é tarefa típica das revoluções burguesas. Ademais, outras tarefas burguesas contidas como promessa na Revolução de 1789 não tinham sido cumpridas. Exemplos mais importantes são a separação da Igreja e do Estado e a implantação do ensino público, gratuito, obrigatório e laico. O desenvolvimento do princípio da cidadania, criatura típica da revolução burguesa, depende da implementação de medidas como essas. 
A Comuna tratou de realizar essas duas tarefas. Em resumo, a Comuna tinha de levar adiante as transformações burguesas inacabadas para, como disse Engels, “aplainar o terreno” para a transformação socialista da velha sociedade. Para essa tarefa de “aplainar o terreno” foi possível contar com grande parte da pequena burguesia de Paris, dos artistas, dos profissionais liberais e de alguns setores radicalizados do republicanismo burguês. É por isso que, quando Marx apresenta sua caracterização da Comuna de Paris, ele usa a expressão um “governo essencialmente operário”, indicando a existência de uma frente popular dominantemente operária no governo da Comuna.
Mas há uma componente socialista presente na política da Comuna de Paris que é menosprezada pelos historiadores, inclusive pelos historiadores socialistas. Isso não decorre da ignorância dos fatos históricos, mas da concepção economicista de socialismo que ainda vigora entre os analistas. Refiro-me ao tipo de democracia que a Comuna de Paris estabeleceu: mandato imperativo, revogável pelos eleitores, eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi o “governo mais barato” da história) etc. Essa democracia de tipo novo, que combina democracia representativa com democracia direta, representa o início de um processo de extinção do aparelho de Estado, enquanto aparelho especial colocado acima da sociedade. Ou seja, essa política da Comuna de Paris representa uma socialização do poder político. Pois bem, essa socialização do poder político é parte integrante e imprescindível do socialismo, do mesmo modo que a socialização dos meios de produção. A política da Comuna para a organização do poder era uma política socialista, embora seus dirigentes não o tivessem declarado e muitos deles, talvez, não tivessem consciência desse fato.
Vejamos como Marx resume sua tese sobre a Comuna de Paris no livro Guerra Civil na França.
“A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para levar adiante, dentro de si própria, a emancipação econômica do trabalho. (....) A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar o cimento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por consegüinte, a dominação de classe.”
Lendo o texto acima, observa-se que se trata de uma forma política que traz “dentro de si própria” a “emancipação econômica do trabalho”. Ou seja, a socialização do poder induz a socialização dos meios de produção. Com o movimento operário exercendo democraticamente o poder (mandato imperativo, dissolução do exército permanente etc.) pode-se afirmar que se cria um desajuste - ou desequilíbrio, ou contradição – entre o poder socializado, de um lado, e a economia capitalista baseada na propriedade privada, de outro. Retomando os termos de Marx, a “dominação política dos trabalhadores” é “incompatível” com sua “escravidão social”. Daí ser possível fundamentar teoricamente a análise prospectiva que se segue no raciocínio de Marx: a Comuna (realidade política) “teria de servir” (tempo futuro) de “alavanca” para a eliminação da exploração de classe (realidade econômica).
É por isso, e apenas por isso, que é correto repetir, 130 anos depois, a idéia de Marx, segundo a qual a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, “em si mesma” o socialismo. Foi só isso que Marx afirmou. E, visto os debates que essa afirmação ensejou, podemos dizer que só isso já foi afirmar muito.

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