30 de abr. de 2013

Maio, nosso maio:a riqueza é daqueles que a produzem





Canção da saída 

Se não tens o que comer 
como pretendes defender-te 
é preciso transformar 
todo o estado 
até que tenhas o que comer 
e então serás teu próprio convidado.
Quando não houver trabalho para ti 
como terás de defender-te
é preciso transformar
todo o estado
até que sejas teu próprio empregador.
e então haverá trabalho para ti

se riem de tua fraqueza
como pretendes defender-te?
deves unir-te aos fracos.
e marcharem todos unidos.
então será uma grande força
e ninguém rirá.


Bertolt Brecht

28 de abr. de 2013

O golpe de Thatcher - Funeral digno de um ditador

por John Pilger

Após o desaparecimento de Thatcher, recordo suas vítimas. A filha de Patrick Warby, Marie, foi uma delas. Marie, com cinco anos, sofria de uma deformidade do intestino e precisava de uma dieta especial. Sem ela, o sofrimento era aflitivo. Seu pai era um mineiro de Durham e gastara todas as suas poupanças. Era o Inverno de 1985, a Grande Greve tinha quase um ano e a família estava empobrecida. Embora a necessidade de operação não fosse contestada, o Departamento de Segurança Social recusou ajuda a Marie. Posteriormente, obtive registos do caso mostrando que Marie fora recusada porque o seu pai era "influenciado por uma disputa sindical".

A corrupção e desumanidade sob Thatcher não conheciam fronteiras. Quando chegou ao poder em 1979, Thatcher pediu uma proibição total de exportações de leite para o Vietname. A invasão americana havia deixado um terço das crianças vietnamitas desnutridas. 

Testemunhei muitas visões penosas, incluindo crianças a ficarem cegas devido à falta de vitaminas. "Não posso tolerar isto", disse um médico angustiado num hospital pediátrico de Saigão, quando olhávamos para um rapaz a morrer. A Oxfam e a Save the Children havido deixado claro para o governo britânico a gravidade da emergência. Um embargo conduzido pelos EUA havia forçado o preço local do quilo de leite a subir para dez vezes o do quilo de carne. Muitas crianças podiam ter sido recuperadas com leite. A proibição de Thatcher impediu. 

No vizinho Camboja, Thatcher deixou um rastro de sangue, secretamente. Em 1980, ela exigiu que o defunto regime Pol Pot – o assassino de 1,7 milhão de pessoas – retivesse o seu "direito" a representar suas vítimas na ONU. A sua política era de vingança do libertador do Camboja, o Vietname. O representante britânico foi instruído a votar com Pol Pot na Organização Mundial de Saúde, impedindo-a dessa forma de proporcionar ajuda para o lugar onde era mais necessária do que qualquer outro na terra. 

Para esconder esta infâmia, os EUA, a Grã-Bretanha e a China, os principais apoiantes de Pol Pot, inventaram uma "coligação de resistência" dominada pelas forças do Khmer Rouge de Pol Pot e abastecida pela CIA em bases ao longo da fronteira tailandesa. Havia uma dificuldade. Na sequência da derrocada do Irangate, armas-por-réfens, o Congresso dos EUA proibira aventuras clandestinas no estrangeiro. "Num daqueles acordos ambos gostavam de fazer", contou um alto responsável do Whitehall [1] ao Sunday Telegraph, "o presidente Reagan sugeriu a Thatcher que o SAS [2] deveria assumir o comando do show do Camboja. Ela prontamente concordou". 

Em 1983, Thatcher enviou o SAS para treinar a "coligação" na sua própria e diferente marca de terrorismo. Sete equipes de homens do SAS chegaram de Hong Kong e soldados britânicos começaram a treinar "combatentes da resistência" em estender campos de minas num país devastado pelo genocídio e a mais alta taxa de mortes e mutilações do mundo devido a campos de minas. 

Noticiei isto na altura e mais de 16 mil pessoas escreveram a Thatcher para protestar. "Confirmo", respondeu ela ao líder da oposição Neil Kinnock, "que não há envolvimento do governo britânico de qualquer espécie no treino, equipamento ou cooperação com o Khmer Rouge ou aliados dele". A mentira era de cortar o fôlego. Em 1991, o governo de John Major admitiu no parlamento que o SAS havia na verdade treinado a "coligação". "Nós gostamos dos britânicos", disse-me mais tarde um combatente do Khmer Rouge. "Eles foram muito bons a ensinar-nos a montar armadilhas explosivas (booby traps). Pessoas confiantes, como crianças em campos de arroz, foram as vítimas principais". 

Quando os jornalistas e produtores do memorável documentário "Death on the Rock" , da ITV, revelaram como o SAS havia dirigido outros esquadrões da morte de Thatcher na Irlanda e em Gibraltar, foram perseguidos pelos "jornalistas" de Rupert Murdoch, então acovardados em Wapping [3] atrás do arame farpado. Embora absolvida, a Thames TV perdeu sua concessão da ITV. 

Em 1982, o cruzador argentino General Belgrano navegava fora da zona de exclusão das Falklands [4] . O navio não constituía ameaça, mas Thatcher deu ordens para que fosse afundado. Suas vítimas foram 323 marinheiros, incluindo adolescentes alistados. O crime tinha uma certa lógica. Dentre os mais próximos aliados de Thatcher estavam assassinos em massa – Pinochet no Chile, Suharto na Indonésia, responsáveis por "muito mais do que um milhão de mortes" (Amnistia Internacional). Embora desde há muito o estado britânico armasse as principais tiranias do mundo, foi Thatcher que com um zelo de cruzado procurou tais acordos, conversando empolgada acerca das mais refinadas características de motores de aviões de combate, negociando arduamente com príncipes sauditas que pediam subornos. Filmei-os numa feira de armas, a acariciarem um míssil reluzente. "Terei um daqueles!", disse ela. 

No seu inquérito das armas-para-o-Iraque, Lorde Richard Scott ouviu evidências de que toda uma camada do governo Thatcher, desde altos funcionários civis até ministros, mentira e infringira a lei na venda de armas a Saddam Hussein. Eram os seus "rapazes". Se folhear números antigos do Baghdad Observer encontrará na primeira página fotos dos seus rapazes, principalmente ministros do gabinete, sentados com Saddam na sua famosa poltrona branca. Ali está Douglas Hurd e um sorridente David Mellor, também do Foreign Office, na época em que o seu hospedeiro ordenava o gaseamento de 5000 curdos. A seguir a esta atrocidade, o governo Thatcher duplicou créditos comerciais para Saddam. 

Talvez seja demasiado fácil dançar sobre a sua sepultura. O seu funeral foi uma proeza de propaganda, adequada a um ditador: uma mostra absurda de militarismo, como se se houvesse verificado um golpe. E foi. "O seu triunfo real", disse outro dos seus rapazes, Geoffrey Howe, ministro da Thatcher, "foi ter transformado não apenas um partido mas dois, de modo que quando o Labour finalmente retornou, a maior parte do thatcherismo era aceite como irreversível". 

Em 1997, Thatcher foi o primeiro antigo primeiro-ministro a visitar Tony Blair depois de ele ter entrado na Downing Street [5] . Há uma foto deles, juntos num ricto: o criminoso de guerra em embrião com a sua mentora. Quando Ed Milliband, na sua untuosa "homenagem", travestiu Thatcher como "corajosa" heroína feminista cujas façanhas pessoalmente "admira", fica-se a saber que a velha assassina não morreu de todo. 

25/Abril/2013NT 
(1) Whitehall: rua onde está o Parlamento britânico. 
(2) SAS: tropas especiais britânicas. 
(3) Wapping: bairro de Londres para onde Murdoch mudou a sua empresa, por trás de uma fortaleza a fim de fugir a pressões sindicais da Fleet Street. 
(4) Falklands: Malvinas 
(5) Downing Street: residência oficial do primeiro-ministro britânico. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

23 de abr. de 2013

A economia estado-unidense hoje: Entre a crise sistémica e a guerra permanente

por Rémy Herrera [*]


Introdução 

O capital financeiro, composto pelos mais poderosos oligopólios bancários e financeiros, os quais possuem capital a uma escala mundial, tem o seu centro de gravidade no próprio cerne do poder hegemónico do sistema mundial: os Estados Unidos da América. Historicamente, o retorno do capital financeiro ao poder – consolidado nas últimas décadas do século dezanove, mas colocado sob controle do estado após a Grande Depressão de 1929 – verificou-se após a confirmação do declínio nas taxas de lucro registadas nos principais países capitalistas do centro (Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão) principiados no fim da década de 1960, as quais aprofundaram-se durante a década de 1970 e tornaram-se uma crise do capital aberta e generalizada, com a queda de todo o sistema monetário no caos e na explosão de desigualdades. 

O ponto de viragem para a alta finança esteve ligado ao aumento da taxa de juro (ou prime rate ) nos Estados Unidos em Outubro de 1979. O Federal Reserve Bank, influenciado por políticas monetaristas, unilateralmente e brutalmente tomou esta decisão. Como o "prestamista de último recurso" no sistema monetário internacional, o Fed executou um " coup d'État financeiro" através do qual a alta finança, essencialmente aquela dos Estados Unidos, restabeleceu o seu poder sobre a economia mundial. As consequências desta mudança foram globais, elas afectaram tanto o Norte, cujas estratégias, sob "constrangimento externo", acomodaram os componentes das suas políticas monetárias, como o Sul, contribuindo para estabelecer as condições para uma epidemia de crises de dívida. 

Esta reconquista financeira ocorreu sobre as ruínas dos antigos pilares do sistema global: i) "Regulação fordista" do capitalismo no Norte, desafiadas pela estagflação da década de 1970; ii) programas falhados das burguesias nacionais no Sul, como mostram as crises de dívida na década de 1980; e iii) colapso do bloco soviético no Leste com o fim a URSS no princípio da década de 1990. A conjunção destes três grandes eventos provocou mudanças profundas no equilíbrio de poder entre capital e trabalho à escala global, permitindo a ofensiva neoliberal contra os controles do estado que anteriormente estavam no cerne do seu projecto de transformação de formações sociais. 

Ao nível nacional, os dogmas neoliberais eram atacar qualquer forma de controle estatal e deformar a propriedade do capital em favor do sector privado; isto incluiu reduzir despesas públicas e impor restrições salariais como um elemento chave, dando prioridade, acima de tudo, ao evitar da inflação. Ao nível internacional, os objectivos foram perpetuar a supremacia dos US dólar sobre o sistema monetário mundial, manter taxas de câmbio flexíveis e promover o comércio sem restrições através da remoção de barreiras proteccionistas e liberalização de transferências de capital. Tais mudanças moveram o centro de gravidade do poder para a finança global. 

A "normalização" desta estratégia de desregulação – isto é, de deixar os oligopólios dominantes terem controle exclusivo da "re-regulação" – e da globalização financeira – cujos efeitos foram ampliados pela ausência de uma entidade política supranacional que controlasse os mercados financeiros – era parte das funções de instituições monetárias locais (bancos centrais "independentes") bem como das organizações internacionais, sob o guarda-chuva do arsenal militar dos EUA. O problema é que, hoje, esta estratégia global está em crise profunda, tanto na sua dimensão económica como militar. Este artigo pretende analisar, no quadro destes dois aspectos, as origens, características, mecanismos e consequências da crise actual na hegemonia do sistema capitalista mundial. 

A actual crise sistémica do capital 

Um dos erros mais frequentes na interpretação da crise actual é considerá-la apenas uma "crise financeira", a qual está a contaminar a esfera da "economia real". Ela é, de facto, uma crise do capitalismo, da qual os aspectos mais visíveis e publicitados emergiram dentro da esfera financeira devido ao grau extremo de financiarização do capitalismo contemporâneo. Estamos a tratar de uma crise sistémica que afecta o próprio cerne do sistema capitalista, o que quer dizer, nos Estados Unidos, o centro de poder da alta finança que tem estado a controlar a acumulação ao longo das últimas três décadas. O desastre não se deve à combinação de factores conjunturais: é um fenómeno estrutural. 

As séries de repetidas crises monetário-financeiras que atingiram sucessivamente diferentes economias ao longo dos últimos trinta anos, desde o "coup d'État financeiro" cometido em 1979 pela alta finança nos Estados Unidos, fazem parte integrante da mesma crise: México em 1982; crise de dívida dos países em desenvolvimento na década de 1980; os próprios Estados Unidos em Outubro de 1987; a União Europeia em 1992-1993; o México em 1994; o Japão em 1995; a chamada Ásia emergente em 1997.1998; a Rússia e o Brasil em 1998-1999; os Estados Unidos mais uma vez em 2000 com o estouro da "nova economia da bolha"; então a Argentina e a Turquia em 2000-2001, e assim por diante. Esta crise agravou-se recentemente, sobretudo desde 2006-2007, arrancando a partir do centro hegemónico do sistema mundial e tornando-se generalizada e multidimensional (sócio-económica, política, alimentar, energética, climática...). 

Desde há alguns anos tem havido um certo número de pensadores a sustentarem que a desvalorização do capital era inelutável que seria brutal e numa grande escala. [1] Basicamente esta crise podia ser interpretada como uma crise de super-acumulação de capital que decorre da própria anarquia da produção e leva a uma pressão para a taxa de lucro cair tendencialmente quando as contra-tendências – incluindo as novas, ligadas a derivativos – estancaram-se. Esta super-acumulação manifesta-se através de um excesso de produção vendável, não porque não haja suficientes pessoas que necessitem ou desejem consumir, mas ao invés disso porque a concentração de riqueza tende a impedir uma cada vez maior proporção da população de poder compras as mercadorias. Ao invés de ser questão de uma super-produção padrão de bens, a extraordinária expansão do sistema de crédito tornou possível para o capital acumular em capital-dinheiro o qual pode assumir formas que são cada vez mais abstractas. 

"Capital fictício" parece ser um conceito muito importante para analisar a actual crise do capital (Carcanholo e Nakatani, 1999). Seu princípio básico é a capitalização de receitas as quais são baseadas em valor excedente futuro. Esta espécie de capital é formada principalmente dentro do sistema de crédito, ligando firmas capitalistas ao estado capitalista. Nesta intersecção podem ser encontradas dívidas públicas, capital bancário e bolsas de valores, mas também fundos de pensão, hedge funds especulativos (localizados em paraísos fiscais), ou outras entidades semelhantes. Nos dias de hoje, os veículos de capital fictício mais favorecidos são a titularização (securitization), os quais transformam activos em títulos e as trocas em derivativos. 

Capital fictício, simultaneamente irreal e real, é uma noção complexa. Apesar da sua natureza parcialmente parasitária, um tal capital beneficia de uma distribuição de valor excedente – sua liquidez dá ao seu proprietário o poder de convertê-lo, sem qualquer perda de capital, na "liquidez par excellence ": moeda. Assim, ele alimenta uma acumulação de capital fictício adicional, como meio de remunerar-se. A análise do capital fictício leva ao conceito de "reprodução ampliada", bem como ao exorbitante desenvolvimento de formas de capital cada vez mais irreais, como fontes de valorização autonomizada que aparentemente estão mais separadas do valor excedente ou são apropriadas sem trabalho, como "por magia". A especulação não é um "excesso" ou "erro" de governação corporativa: é um remédio contra o mal estrutural do capitalismo, um remédio que actua contra a tendência para queda da taxa de lucro e proporciona saídas para as massas de capital que já não podem mais ser investidas lucrativamente – o estouro das chamadas "bolhas financeiras" é o preço a ser pago. 

Em consequência, os montantes correspondentes à criação de capital fictício ultrapassaram, de modo rápido e vasto, os montantes destinados a reproduzir directamente capital produtivo. Exemplo: em 2006, o valor anual das exportações mundiais era igual a três dias de comércio em contratos bilaterais, chamados "off-exchanges", os quais não são portanto registados em balanços, e criados quase sem nenhumas restrições cautelares, com 4.200 mil milhões de dólares comerciados por dia. Foram sobretudo os derivativos de crédito, com suas complexas disposições de credit default swaps (CDS) ou collateralized debt obligations (CDO), que criaram ao mudar a visão tradicional do crédito e lançar em jogo vários graus de capital fictício. Estes 4,2 tera dólares são comerciados por um número muito restrito de oligopólios financeiros, os "primary dealers", mencionados pelo Fed como o "G15": Morgan Stanley, Goldman Sachs e outros 13. 

A crise que estalou na secção subprime do mercado habitacional dos EUA foi preparada por décadas de super-acumulação deste capital fictício. Ela deve ser entendida dentro do contexto de um longo período de agravamento da disfunção nos mecanismos de regulação do sistema capitalista mundial, pelo menos desde a super-acumulação de capital-dinheiro na década de 1960, ligada a défices internos e externos dos Estados Unidos – parcialmente causados pela guerra do Vietname – até a tensões insustentáveis sobre o dólar e a uma proliferação de eurodólares, então petrodólares, nos mercados inter-bancários (Herrera e Nakatani, 2008). 

Portanto, as contradições que esta crise revelou têm raízes de longo prazo na exaustão dos motores de expansão que operaram após a II Guerra Mundial, os quais levaram àquelas transformações financeiras. Na esfera real, as formas de extracção do valor excedente a organização da produção alcançaram os seus limites, elas tinham de ser substituídas por novos métodos e uma redinamização do progresso tecnológico (como tecnologia da informação, robótica, internet, ...), modificando as bases sociais da produção pela substituição de trabalho por capital. Após uma sobre-acumulação concentrada na esfera financeira, o excesso de oferta acentuou as pressões reduzindo a taxa de lucro que se observava desde a década de 1960.




Os Estados Unidos no cerne da crise 

A crise foi provocada pela dinâmica que jaz no cerne da própria economia estado-unidense. Por um lado, há uma reequilibragem destes desequilíbrios internos e externos pela drenagem para o exterior de capital estrangeiro duradouro numa escala internacional. Isto pode ser visto como uma operação das classes dominantes dos EUA, absorvendo riqueza do resto do mundo. Por outro lado, causou a maior concentração de riqueza dentro do país em um século. Isto pode ser mostrado por algumas estatísticas: do total de rendimentos nos Estados Unidos, a fatia de rendimento monopolizada pelos 1% mais ricos era de 10% em 1979; em 2009, era de 25%; a proporção dos 10% mais ricos era de um terço do total de rendimentos trinta anos atrás; agora, elevou-se à metade. A tremenda ascensão em lucros financeiros – através da acumulação de capital fictício – pelas classes dominantes deformou a economia dos EUA tomada como um todo. A taxa de poupança, por exemplo, tornou-se negativa pouco antes da crise (Herrera, 2011b). 

Alguns dos principais factores que explicam a crise são "reais" e ligados à austeridade: a crise subprime, na qual muitas famílias pobres encontraram-se em incumprimento, também pode ser analisada pelas políticas de austeridade conduzidas ao longo de mais de 30 anos, as quais diminuíram salários, tornaram o emprego flexível e precário, estenderam o desemprego a uma escala maciça, degradaram condições de vida – políticas ditas neoliberais, que desaceleraram os motores que criam procura e tornaram-na artificial, portanto insustentável. Assim, este regime tem mantido o crescimento pela promoção da procura para consumo privado, enquanto afrouxava e aumentava linhas de crédito. Este boom sem precedentes no sistema de crédito revelou a crise de sobre-acumulação na sua versão actual. Numa sociedade onde um número crescente de indivíduos são excluídos ou deixados sem direitos, expandir oportunidades disponíveis para donos de capital só podia atrasar a desvalorização de fundos excedentes investidos em mercados financeiros – mas não evitá-la. 

Uma das manifestações da crise foi uma destruição brutal de capital fictício. Em 2008, a capitalização das bolsas de valores mundiais caiu de 48,3 para 26,1 milhões de milhões de dólares. Esta espiral descendente no valor dos activos foi acompanhada por uma perda de confiança e uma situação de iliquidez no mercado inter-bancário – sendo explicação mais provável uma insolvência de muitos bancos. Consequentemente, num contexto onde os preços de derivativos compósitos e os riscos que transportam eram cada vez mais mal avaliados, os problemas mudaram-se do sector habitacional subprime para aquele dos créditos de créditos, a seguir para empréstimos solventes (primes), antes do estouro da bolha das ferramentas ligadas a hipotecas habitacionais contaminarem os outros sectores dos mercados financeiros e, a partir dali, do próprio mercado monetário. 

Para além da destruição de capital fictício que leva a quedas drásticas na capitalização de mercado, [2] é todo o sistema de financiamento da economia que ficou bloqueado. Portanto, as economias entraram em depressão conjunturalmente a partir de 2007 – mas também, por razões estruturais, num mundo onde pico foi atingido para centros recursos naturais estratégicos (dentre eles, o petróleo) e onde a busca de novas fontes de energia coloca limites objectivos ao crescimento, tudo isto dando origem a pressões para guerras. Em consequência, os indicadores económicos foram afectados: quedas na taxa de crescimento do PIB (Figuras 1 e 2), no consumo familiar e no comércio externo, défices de exploração para numerosas empresas, desemprego, perdas no sector habitacional, etc. 

Multiplicaram-se bancarrotas de empresas e afectaram alguns líderes em sectores industriais que registaram perdas abissais (General Motors, por exemplo). Daí a explosão da taxa de desemprego para mais de 10% da força de trabalho no quarto trimestre de 2009. Seguindo a definição oficial e bastante restritiva, o desemprego atingiu aproximadamente 15 milhões de pessoas em 2010 (Figura 3). E sua estrutura deteriorou-se: a proporção de desempregados a longo prazo aumentou drasticamente a partir do segundo semestre de 2008. Os sectores de produção tradicionais foram os mais gravemente afectados (indústria, construção, agricultura); e as comunidades afro-americana e hispânica – ou "raças", conforme o vocabulário padrão da administração dos EUA – sofreram mais do que outras. Simultaneamente, os lucros total corporativos apropriados por todos os oligopólios estado-unidenses da alta finança – isto é, utilizando a mesma terminologia, as instituições financeiras interna, incluindo sectores das finanças, banca e seguros – recuperaram-se muito rapidamente, retornando em 2009 para o mesmo nível de 2001 e então, no fim de 2010, para o mesmo nível de lucros do momento anterior ao estalar da crise (Figura 4). 

Uma das principais características do caminho neoliberal era, até a economia ter implodido, uma baixa taxa de acumulação nos Estados Unidos. Em 2000, a seguir à alta em valor conduzida pelas novas tecnologias de informação e comunicação, a queda provocada pelo estouro da bolha da "nova economia", causou um acentuado arrefecimento da actividade económica. Durante os mandatos de George W. Bush, o crescimento do PIB nunca foi superior à taxa de 2,5% em qualquer ano. Esta taxa declinou outra vez durante o Verão de 2007 e entrou em colapso no segundo semestre de 2008, com a "crise financeira" no sector imobiliário propagando-se a toda a economia. Desde o fim de 2006, os ganhos de produtividade registados após o aumento temporário durante o episódio da "nova economias" desaceleraram-se e convergiram rumo à sua muito mais moderada tendência de longo prazo. 

Alguns aspectos preocupantes da crise estão ligados à elevada dívida pública, particularmente aquela do governo federal, o qual "nacionalizou" parcialmente dívidas privadas. Há também a contrapartida externa deste processo conduzido pelo endividamento maciço, isto é, a deterioração da balança de pagamentos dos EUA, especialmente os défices de transacções correntes. Isto envolveu uma depreciação pronunciada do dólar em comparação ao euro e ao yen. Os desequilíbrios externos dos Estados Unidos, os quais ainda têm à sua disposição a divisa do sistema monetário internacional, foram compensados pelas sempre crescentes influxos sustentáveis de capital do resto do mundo, China inclusive. Até agora, Washington tem sido capa de forçar todos – desde os seus parceiros do Norte (Europa e Japão) até os seus potenciais rivais do Sul (como os BRICS e, especialmente, a China) – a enviar capital para os Estados Unidos; mas por quanto tempo mais?
Politicas anti-crise e guerra de divisas 

A primeira tentativa do governo americano para contrapor-se à crise consistiu em coordenar as acções dos bancos centrais para injectar liquidez no mercado inter-bancário. Fez isto através da criação de moeda primária, oferecendo linhas especiais de crédito aos bancos líderes primários e reduzindo taxas de juros. Um ponto de viragem verificou-se depois de as autoridades monetárias evitarem intervir durante a bancarrota do Lehman Brothers em meados de Setembro de 2008. Dentro de poucas horas, o Tesouro dos EUA e o Federal Reserve fizeram um giro de 180º: um certo número de instituições financeiras em perigo (como a companhia de seguros AIG) foram nacionalizadas – geralmente sem que o governo obtivesse o direito de voto ou qualquer controle acrescido –, vendas a descoberto foram temporariamente suspensas na Grã-Bretanha, a seguir nos Estados Unidos; o Fede abriu enormes linhas de crédito para os dealers primários em condições especiais, com taxas de juro de quase zero; o governo ajudou estes estabelecimentos privados a organizarem a tomada de grupos em bancarrota e a recapitalizá-los... 

Por outras palavras, o governo federal apoiou fortemente os esforços dos oligopólios financeiros para concentrar a propriedade e o controle do capital, levando à hiper-centralização. O Citigroup tomou o Lehman Brothers, o Bank of America tomou o Merrill Lynch, o Morgan tomou o banco de poupanças Washington Mutual, etc. Foi criado um "cancelamento" ("defeasance") de fundos, de modo que o estado garantisse títulos "tóxicos". Finalmente – isto foi a medida crucial – em Outubro de 2008 o Fed estendeu sua organização de linhas swap ou "disposições temporárias recíproca sobre divisas" aos bancos centrais nos maiores países do Norte bem como do Sul (México, Coreia do Sul, ...), tornando-as quase "ilimitadas" (Herrera, 2010b). 

A seguir, houve o planos Paulson Nº 1 e Nº 2 e os programas para o apoio geral à economia estado-unidense (incluindo a General Motors, sem impedir despedimentos maciços) – e, pelo caminho, a recapitalização do Fed, o qual estava no fim do seus recursos... Contudo, no princípio de 2011, o presidente do Federal Reserve advertiu tanto o Tesouro como o Congresso dos EUA de que a sua instituição não continuaria a financiar défices públicos extra, que tinha de haver um retorno a maior rigor e que as taxas de juro tinham de ser aumentadas... 

No entanto, uma ascensão da taxa de juro envolveria dois grandes riscos: para os Estados Unidos, que o fardo da dívida pública se tornasse ainda mais pesado e a sua dinâmica incontrolável; e para o resto do mundo, que os fluxos de capital que o abandonam recomeçassem a financiar os défices nos Estados Unidos, permitindo-lhes continuarem a viver mais uma vez acima dos seus meios. 

Dentre os mais gritantes efeitos da crise actual está a exacerbação de uma "guerra de divisas". Num ambiente altamente incerto, a criação maciça de moeda e a fixação de taxas de juro apenas acima de zero, juntamente com enormes défices fiscais – o défice orçamental correspondente a aproximadamente 10% do PIB nos Estados Unidos (Figura 6) – e o aumento desproporcionado da dívida pública (Figura 7), tudo isto provocou uma depreciação do US dólar e uma "guerra de divisas". Esta última a esta altura está a ser paradoxalmente vencida pelo próprio dólar, pela razão fundamental de que os Estados Unidos têm à sua disposição uma arma extraordinária: seu banco central pode criar montantes quase ilimitados de moeda a qual é aceite por todos os países estrangeiros, porque até agora o dólar permanece a divisa de reserva mundial. 

Isto permite aos Estados Unidos imporem sobre o resto do mundo os termos de uma capitulação que os obrigas a prosseguirem políticas neoliberais, bem como a suportar a taxa de câmbio do dólar que melhor se adeque à estratégia de dominação dos EUA – mesmo se isto implicar uma depreciação imediata das enormes reservas de divisas mantidas pelas autoridades monetárias de outros países, como o BRICS. O problema com tal estratégia é que, durante anos, o défice comercial e a produção interna dos EUA reagiram pouco ao rebaixamento do valor do dólar: isto resulta num fraco crescimento económico nos Estados Unidos, numa situação que tem piorado porque agora as causas das dificuldades decorrem de todo o sistema de financiamento da economia. 

Os efeitos da actual crise sistémica variam conforme as características das economias do Sul e o grau da sua integração no sistema capitalista mundial. Alguns países estão tão excluídos e presos em armadilhas de pobreza que a crise parece não afectá-los. Mas, na realidade, é impressionante para todos eles, sejam eles "emergentes" ou não. Fundamentalmente, parece que todas as condições estão a combinar-se de modo que uma grande consequência da crise poderia ser um aprofundamento da confrontação Norte-Sul – apesar dos recentes movimentos do G20 para "cooptar" países sulistas – num mundo em que os níveis das contradições estão a tornar-se cada vez mais complexos. 

No Sul, uma grande maioria de governos optou por continuar a manter o capitalismo – ou uma das suas variantes – em vigor. No entanto, nossa opinião é que esta estratégia não é solução. É impossível no Sul resolver as profundas contradições produzidas pelo sistema capitalista (por exemplo, aquelas devidas à recusa de acesso à terra a camponeses), e isto leva os países sulistas a entrarem em conflito com as potências do Norte. Isto é claramente o caso num período em que são necessárias transferências de capital em direcção aos Estados Unidos, em ainda maiores proporções, para travar a espiral de desvalorização de capital fictício. 

Estas transferências do Sul em direcção aos Estados Unidos operam através de diferentes canais: repatriação de lucros de investimentos directos estrangeiros ou de carteira de investimentos; reembolso de dívidas externas, transformação de reservas oficiais em créditos (concedidos aos Estados Unidos), intercâmbio desigual, mas também fugas de capital, corrupção... (Nakatani e Herrera, 2007). É provável que tais transferências em breve tenham de acelerar-se para garantir o resgate da alta finança e evitar bancarrotas nos centros capitalistas. Tudo isto se verifica enquanto os Estados Unidos tem o arsenal militar necessário para impor esta drenagem de capital duradouro do resto do mundo (Figuras 7, 8 e 9).
Tabela 1- Principais companhias de armamento no mundo em 2010
Classificação
Companhia
País
Volume de negócios no sector militar
(mil milhões de dólares)
1Lockheed MartinEstados Unidos42.025
2BAE SystemsReino Unido33.418
3BoeingEstados Unidos31.932
4Northrop GrummanEstados Unidos30.656
5General DynamicsEstados Unidos25.904
6Raytheon Co.Estados Unidos23.139
7EADSHolanda15.013
8FinmeccanicaItália13.332
9L-3 CommunicationsEstados Unidos13.014
10United TechnologiesEstados Unidos11.100
11SAICEstados Unidos8.400
12ThalesFrança8.032
13ITTEstados Unidos6.097
14KBREstados Unidos5.410
15HoneywellEstados Unidos5.382
Fonte: News Defence (2011).

Guerra permanente 

A administração Obama planeia reduzir o défice fiscal do governo federal em cerca de 500 mil milhões de dólares em 2013, graças às poupanças do fim da guerra no Iraque – a qual supostamente excederia os custos do reposicionamento de tropas no Afeganistão. No entanto, o facto é que o presidente Obama e sua equipe não reverteram a lógica das "guerras preventivas" conduzidas pelo seu antecessor – ao contrário do que ele havia sugerido durante a sua campanha eleitoral – e os Estados Unidos não cessaram de "regular" o sistema capitalista mundial através de guerras militares. A crise está estreitamente ligada a estas guerras (Herrera, 3007, 2010b, 2011b). Elas estão integradas no ciclo, de um ponto de vista económico, como formas extremas de destruição de capital, mas também politicamente para a reprodução das condições do comando de fracções da classe dominante – isto é, alta finança – sobre o sistema mundial. Veremos na próxima secção como os oligopólios financeiros lançaram recentemente um assalto ao complexo militar-industrial dos Estados Unidos [que] lhes deu um controle decisivo sobre este sector. Como matéria de facto, o capital financeiro apossou-se de suficientes acções comerciadas publicamente de corporações do complexo militar-industrial para assumir o seu controle. 

A despesa militar tornou-se uma grande fonte de lucros para o capital num contexto no qual a utilização de forças armadas é a estratégia imposta sobre o mundo pela alta finança dos EUA como condição para a sua reprodução. A militarização está a tornar-se o modo de existência para o capitalismo. E aqui, o papel do estado (neoliberal) é fundamental para o capital – porque é o estado que vai à guerra no interesse do capital, enquanto as agências governamentais atribuem montantes astronómicos de contratos militares às companhias transnacionais de armamento, através do seu lobbying (Mampaey e Serfati, 2004). 

Dever-se-ia observar que os Estados Unidos lançaram suas guerras contra o Afeganistão e o Iraque num momento muito específico. Quanto ao Afeganistão, o ano de 2001 já era um tempo de crise – tal como 1913 e 1938 foram anos de depressão que antecederam as Guerras Mundiais. A crise actual emergiu exactamente quando estavam a ter lugar mudanças na política monetária estado-unidense, seguindo-se o agravamento dos desequilíbrios internos e externos – o primeiro, devido à necessidade de financiamento ligado parcialmente a estas guerras; o segundo devido em parte ao outsourcing, acima de tudo para a China. Portanto, a seguir ao arrefecimento do crescimento económico em 2000, o Fed reduziu grandemente sua taxa de juro: de 6,50% em Dezembro de 2000 para 1,75% em Dezembro de 2001, a seguir para 1,00% em meados de 2003, e ela foi mantida a este nível muito baixo até meados de 2004. Foi precisamente neste momento, quando as taxas de juro reais haviam-se tornado negativas, que os mecanismos da crise subprime foram gerados, com cada vez maior tomada de risco, especialmente no sector habitacional. Então, devido à pressão agravada causada pelo esforço de guerra, o Fed (dentre outras decisões, mas de modo significativo) teve de elevar a taxa de juro dos seus 1,00% de meados de 2004 (isto é, um ano após o começo da guerra no Iraque) para 5,25 em meados de 2006. E logo após, a partir do fim de 2006, começou um incumprimento maciço de pagamentos de hipotecas por parte dos devedores – os seus números a aumentarem devido à contracção do crescimento e à estagnação dos salários. 

A Reserva Federal manteve esta ligeiramente alta taxa de juro, acima de 5%, até meados de 2007, embora os sinais da crise já fossem aparentes. Foi só em Agosto de 2007, portanto muito tardiamente, que o Fed começou a dar aos bancos quantidades de crédito a taxas reduzidas, taxas prenda, próximas do zero; este passo, contudo, não conseguiu impedir novos pânicos financeiros. Portanto, a crise explodiu quando uma massa crítica de devedores tinha dificuldades em reembolsar seus empréstimos. Foi este o caso no fim de 2006, depois de o Fed ter elevado suas taxas de juro para atrair o capital a fim de financiar os orçamentos militares que haviam sido inchados por novas guerras. Considerando tudo, não houve vitória militar para os Estados Unidos, nem qualquer ressuscitar da acumulação apesar da destruição provocada por estes conflitos. Ao contrário, o prosseguimento de tais guerras, desde a Líbia, via NATO, até o Iémen, onde em Junho de 2011 o presidente Obama convidou o Pentágono e a CIA a colaborarem estreitamente, está a exacerbar as contradições ainda mais... 

A marcha forçada da sociedade iraquiana rumo ao neoliberalismo, começada imediatamente depois de este país ser ocupado, proporciona um "exemplo de tipo ideal" das consequências económicas desta violência. Sem qualquer direito ao Iraque e aos seus recursos, a coligação de ocupação conduzida pelos Estados Unidos (e o Reino Unido) impôs a plena privatização de serviços públicos e uma mudança correspondente na estrutura de propriedade do capital de mais de 200 companhias (nos sectores da água, electricidade, telefone, estações de televisão, ferrovias, aeroportos, hospitais...) a fim de entregá-las a firmas transnacionais sob o pretexto da "reconstrução". 

Para este objectivo, Lewis Paul Bremer, o administrador civil da autoridade provisória, então nomeado pelo presidente George W. Bush, durante os seus 13 meses no gabinete [emitiu] cerca de 100 ordens (chamadas "Coalition Provisional Authority Orders"), as quais serviam como substitutos de leis nacionais – mas sem qualquer controle democrático. As companhias transnacionais estado-unidenses (e britânicas) obtiveram aproximadamente 85% de todos os contratos adjudicados. A Ordem 17 defendia os direitos de ocupantes legais e seus subcontratantes, suplementada pela Ordem Executiva 13303, a qual os protegia contra eventual processo nos Estados Unidos. O diploma isentava as 38 firmas na coligação de impostos de importação, ao passo que a Ordem 39 permitia propriedade estrangeira de até 100% em propriedades de terra e companhias iraquianas e não estabelecia restrições à repatriação de investimentos financeiros e lucros no Iraque. A Ordem 400 permitia a estrangeiros comprarem bancos locais. A Ordem 81 impunha a privatização de recursos biológicos, o patenteamento da vida (para sementes agrícolas) e a liberalização dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Em Fevereiro de 2004, o Iraque tornou-se observador na Organização Mundial de Comércio, antes de preencher sua candidatura a membro pleno, num "procedimento de emergência). Em consequência, a guerra no Iraque transformou este país, em meses, numa das mais neo-liberalizadas economias do mundo. [3]

A alta finança e os militares 

Em 2010 as despesas militares nos Estados Unidos foram de aproximadamente 700 mil milhões de dólares (Figura 7), isto é, pouco mais de 5% do PIB, a ser comparado com 6% para educação (Figura 8). Isto representou cerca de um quinto do orçamento federal e quase 44% das despesas militares mundiais (Figura 9). Contudo, o fardo real é significativamente maior. Na verdade, algumas estimativas consideram que o total de despesas militares dos EUA, incluindo pagamentos de juros sobre dívidas a elas associadas, actualmente excederia 1,0 ou memo 1,1 milhão de milhões de dólares (Foster e Magdoff, 2009). Mesmo este ajustamento para cima, o "fardo militar" (isto é, a proporção da defesa no PIB) subestima a importância efectiva do sector da defesa na economia americana. Também é necessário avaliar a força destrutiva e o alcance das armas do Pentágono, incluindo o impacto da sua rede mundial de bases militares. Qualquer que seja o critério escolhido para medir a extensão da militarização – incluindo a I&D da defesa (Figura 10) ou despesas de capital dos militares (Figura 11), a superioridade dos EUA é clara. 

Não há escassez de modernos "aproveitadores" ("profiteers") da guerra, incluindo oficiais sénior na activa e na reforma, membros de comités do Congresso sobre gastos de defesa e administradores de topo de companhias de armamento, cujas actividades de lobbying obtiveram-lhes lucrativos contratos militares das várias agências governamentais. Aqui estão, em geral, as principais firmas transnacionais produtoras de armas, com vendas astronómicas e contratos de vários milhares de milhões de dólares para cada uma delas, como Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, General Dynamics, L-3 Communications, Raytheon, United Technologies, SAIC, ITT, Kellogg Brown & Root, Honeywell, General Electric, ITT, Computer Sciences, etc. (Tabela 1); e mais especificamente, aqueles entre elas que beneficiaram dos contratos adjudicados no Iraque e no Afeganistão: a KBR outra vez (com 14,4 mil milhões de dólares entre meados de 2002 e meados de 2004), a Parsons (5,3 mil milhões no mesmo período), Fluor (3,8 mil milhões), Washington Group (3,1), Shaw Group E&I (3,0), Bechtel (2,8), Perini (2,5), Contrack (2,3), mas também a Tetra Tech, USA Environmental, CH2M Hill, American International Contractors (com cerca de 1,5 mil milhões de dólares respectivamente), e assim por diante (Herrera, 2010b). 

O ponto fundamental a ser sublinhado aqui é que o capital financeiro continua a fortalecer a sua recente e bastante rápida ascendência sobre o complexo militar-industrial dos EUA. Isto pode ser visto quando investidores institucionais, eles próprios dependentes dos mais poderosos oligopólios bancários e financeiros dos EUA, capturaram a estrutura de propriedade do capital destas companhias militares. No princípio dos anos 2000, a proporção controlada pelo capital financeiro alcançou 95,0% do capital a Lockheed Martin, 86,5% do da Engineered Support Systems, 85,9% da Stewart & Stevenson Services, 84,7% da L-3 Communications, 82,8% da Northrop Grumman, 76,0% da General Dynamics, 70,0% da Raytheon, 66,0% da Titan, 65,0% da Boeing, etc. 

Analogamente, quando o governo "externaliza" cada vez mais o seu negócio da defesa, uma fatia crescente de companhias militares privadas fica sob o controle da finança. Por exemplo, a DynCorp foi comprada pela companhia de software Computer Sciences Corp. em 2003 e, dois anos depois, tornou-se propriedade do fundo de acções privado Veritas Capital. Anteriormente, em 2000, a L-3 Communications Holdings controlou a MPRI. Uma consequência destas tomadas de controle é que cidadãos comuns participam (muitas vezes sem o seu conhecimento) na propriedade de uma companhia militar cujas actividades vão desde as missões de mercenários até o "interrogatório" de prisioneiros... No fim de 2006, sua colaboraç 
ao foi recompensada. O MPRI obteve um contrato para apoiar o U.S. Army no Iraque e no Afeganistão; os preços oficiais das acções comuns das firmas associadas e da sua companhia mãe dispararam para cima. Outra companhia militar privada, a Vinnell, cuja lucratividade atraiu tanto interesse que os seus proprietários mudaram várias vezes nos últimos anos, havia sido comprada anteriormente pelo grupo financeiro Carlyle... (Cicchini e Herrera, 2008). 

O número de agentes empregues por companhias militares privadas no Iraque atingiu os 182 mil em 2008, ou seja, um número maior do que aquele do pessoal militar americano no Exército, Marinha, Corpo de Fuzileiros Navais e Força Aérea somados (Figuras 12 e 13). Naquela época, o número total de combatentes paramilitares privados em actividade era aproximadamente de 75 mil, os quais deles faria o segundo mais numeroso contingente empenhado no conflito, muitos mais do que as tropas estrangeiras aliados aos Estados Unidos (aproximadamente 23 mil soldados). Integrados na "Total Force", eles são empregados por aproximadamente 300 companhias privadas, tais como KBR, Blackwater USA, MPRI, Vinnell, DynCorp, Control Risks, Pacific Architects & Engineers, Custer Battle, Titan, ArmorGroup, California Analysis Center, etc. Tomadas como um todo, estas firmas partilhariam vendas anuais de mais de 100 mil milhões de dólares. O seu maior cliente é obviamente o estado (neoliberalizado), o qual transformou tanto o Afeganistão como o Iraque em sítios privilegiados de acção para este novo "mercado de guerra"que se abriu após 11 de Setembro de 2001 com o lançamento da "Guerra Global ao Terror". 

No entanto, tais mudanças geraram novas contradições económicas e políticas, ainda mais profundas do que aquelas que provocaram as mudanças. A ineficácia desta estratégia de "privatização da segurança" é cada vez mais aparente do Iraque, bem como no Afeganistão; ela não "minimiza custos" e nem tão pouco faz vencer estas guerras. Alguns economistas estimam que os custos financeiros destas guerras são demasiado altos... [4] O que quer seja poupado ao recrutar mercenários experientes – ao invés de treinar novos recrutas – é perdido devido às altas quantias pagas a firmas militares com fundos públicos. E os escândalos são conhecidos: sobrecarregar preços ou contrato por administração ("cost plus"), ausência de competição sob o pretexto de "acordos secretos" com o Pentágono ou a CIA, dupla contabilidade e pagamentos por serviços que não são executados, conluio duvidoso de accionistas, além de abusos repetidos (que vão desde a tortura até crimes impunes de mercenários)... Têm sido observados conflitos entre soldados do exército regular e mercenários privados – sendo os últimos mais bem pagos, com melhores "condições de trabalho" e muitas vezes escapando a penalidades legais... 

A exacerbação das contradições dentro do sistema capitalista 

Entretanto, o fracasso desta nova "parceria público-privado" é completo, como também é o caso da própria estratégia de guerra permanente. Esta não impediu o ressurgimento de protestos e resistências dentro do exército. Hoje, a oposição às guerras é parcialmente organizada pelo IVAW, ou "Iraq Veterans Against the War", movimento fundado pela convenção de Veteranos pela Paz efectuada em Boston em Julho de 2004 a fim de encorajar as vozes de pessoal activo e veteranos que recusam a guerra no Iraque, mas forçados a manterem-se silenciosos. O espírito de rebelião da antiga "Resistência dentro do Exército" ("Resistance Inside The Army", RITA), durante a guerra do Vietname, exala-se no seu manifesto. Desde o princípio da guerra no Iraque, mais de meio milhão de soldados americanos fizeram pelo menos uma missão ali. Segundo dados estatísticos oficias, entre Março de 2003 e Julho de 2008, 4.124 deles foram mortos (num total de 4.438 mortos entre todas as tropas da coligação). Fontes alternativas[5] , que descrevem os artifícios utilizados pelas autoridades militares para reduzir o número de baixas tornadas públicas, sugerem números muito mais elevados... 

Depois de ter anunciado a retirada do Iraque ao longo de 19 meses a começar em Fevereiro de 2009, e o reposicionamento de tropas no Afeganistão, o desafio do presidente Barack H. Obama será tentar amortecer o impacto destas decisões no interior da sociedade estado-unidense. Os efeitos da procura efectiva associados às guerras no Iraque e no Afeganistão afectam essencialmente o curto prazo, e os efeitos tecnológicos são positivos somente para o complexo militar-industrial, o qual é claramente insuficiente para restaurar o crescimento sustentável. A destruição de capital provocada por estas guerras – considerável para os povos que sofrem estes conflitos – não revitalizará a acumulação no centro da economia hegemónica do sistema capitalista mundial, como foi o caso durante a reconstrução conduzida pelo Plano Marshall após a II Guerra Mundial. Para ser capaz de recomeçar um ciclo de expansão de acumulação de capital de longa duração no Norte, a crise teria de "destruir" montantes absolutamente gigantescos de capital fictício, a maior parte dele sendo parasitário. Contudo, as contradições profundas que caracterizam o sistema capitalista tornaram-se agora tão difíceis de resolver uma tal desvalorização poderia impelir ao colapso. 

Pensadores ortodoxos também acreditam que a crise actual levará ao colapso do capitalismo, como, por exemplo, os analistas do Global Europe Anticipation Bulletin, cujas previsões acerca do agravamento da situação levam à total deslocação geopolítica do sistema, à queda do dólar e ao desaparecimento das bases do sistema financeiro globalizado; ou, nos Estados Unidos, aquelas [análises] de Money&Markets, que prevêem o futuro aprofundamento da crise numa sequência mais tradicional: ampliação do défice fiscal, inchaço da dívida pública, defesa insuficiente do dólar pelas autoridades monetárias dos EUA... Por agora, o agravamento da situação mina um pouco mais a hegemonia unipolar dos Estados Unidos. 

A esta luz, uma pequena mas significativa minoria entre as correntes pensamento dominantes continua a ser cada vez mais radical no seu apoio a teses ultra-liberais, inspiradas do von Mises, Hayek ou Rothbard. [6] Suas análises da crise baseiam-se numa fé reafirmada no carácter automático do reequilíbrio do mercado. Isto é aborrecido para os neoliberais, na medida em que estes ultra-liberais defendem a ideia de que a crise decorre de um excesso de intervencionismo e que o estado não deveria salvar os bancos e companhias em dificuldade. O que precisa ser feito, segundo eles, é por um fim às regulações do estado que limitam a liberdade dos agentes nos mercados. Estes autores são portanto contra qualquer plano anti-crise e, em particular, contra qualquer regulação das taxas de juro pelo banco central. Os mais extremistas entre eles chegam até a apelar pela supressão das instituições do estado – incluindo o exército – bem como a privatização da moeda. Ainda que estejam conscientes de que tais medidas empurrariam o capitalismo rumo ao caos, eles pensam que, graças a mecanismos de mercado, este caos beneficiaria o capital e o capitalismo reconstituir-se-ia a si próprio mais rapidamente e melhor do que através de intervenções do estado na forma de assistência pública artificial a empresas que em qualquer caso estão condenadas a fracassar. 

Paralelamente, a gravidade da crise tem favorecido um retorno a teses "reformistas" (Krugman, 2009). De facto, enquanto medidas "keynesianas" eram perceptíveis – inclusive no plano de G.W. Bush de 2008, por exemplo (com sua entrega de parte dos impostos) e, acima de tudo, no programa do presidente Obama (infraestrutura, etc) – hoje, a prioridade é dada claramente ao neoliberalismo a fim de salvar tanto quanto possível do capital fictício sobre-acumulado. Contudo, as actuais políticas anti-crise não são keynesianas e os seus iniciadores não se libertaram dos dogmas neoliberais. Na verdade, o Fed e os outros bancos centrais do Norte continuam a criar moeda primária numa escala maciça. Mas esta política monetária aparentemente "keynesiana" caiu de facto na "armadilha da liquidez" (" liquidity trap "), em que a estratégia de rebaixamento da taxa de juro real demonstrou-se incapaz de aumentar a eficácia marginal do capital e transferir capital-dinheiro da esfera financeira para a esfera produtiva. 

As crises constituem momentos nos quais fracções de capital, geralmente as menos produtivas e/ou inovadoras, são absorvidas e incorporadas numa estrutura de propriedade capitalista mais concentrada. Até agora, cada reorganização do capital na história permitiu ao sistema construir instituições e instrumentos mais eficazes para amenizar os piores efeitos devastadores destas crises, mas de modo nenhum para resolver as contradições profundas do sistema capitalista. 

Conclusão 

A probabilidade da escalada da crise actual é extremamente alta hoje – não só na Europa com as dificuldades da zona euro e as preocupações causadas pelo endividamento público, ou no Japão, preso numa conjunção de problemas dramáticos, mas também e acima de tudo nos próprios Estados Unidos. Há uma alta probabilidade de que a presente crise venha a tornar-se mais aguda, como uma crise sistémica do capital, uma vez que todas as condições estão aí para que isso aconteça. O capitalismo está em perigo, incluindo o próprio centro do sistema. Obviamente, outras crises capitalistas aconteceram no passado e o sistema sempre saiu delas mais forte e mais concentrado do que antes. É uma ilusão acreditar que o capitalismo está em vias de entrar em colapso devido aos efeitos da crise actual. 

Entretanto, se o problema estrutural para a sobrevivência do capitalismo é na verdade o das pressões declinantes sobre a taxa de lucro, e se a financiarização não é uma solução sustentável, a única coisa que este sistema oferecerá, até a sua agonia, será uma pressão constante para aumentar a exploração da força de trabalho, porque o capital fictício pretende ser remunerado e ele consegue isto pela transferência do excedente (surplus) do capital produtivo. A situação presente não se parece ao "começo do fim da crise" como dizem alguns conselheiros do presidente Obama. Não é uma crise de crédito habitual, nem tão pouco uma crise temporária de liquidez, através da qual o sistema se reorganizará e se reforçará para então começar a funcionar "normalmente", com uma nova expansão das forças produtivas numa estrutura de relações sociais modernizadas. Parece ser muito mais grave; o que significa dizer, o princípio de um de longo processo de colapso da actual etapa ou fase do capitalismo, a qual é agora oligopolística e financiarizada. E este processo de entrada em colapso está a abrir vastas perspectivas de transições. Portanto, isto tornará necessário reconsiderar possibilidade de alternativas e transformações pós-capitalistas.Referências
Carcanholo, R. and P. Nakatani (1999), "O Capital Especulativo parasitário", Revista Ensaios , vol. 20, n° 1, pp. 284-304. 

Cicchini, J. and R. Herrera (2008), "Sociétés militaires privées : la guerre par procuration ? Le cas de la guerre d'Irak", Recherches internationales , n° 82, pp. 9-26. 

Foster, J.B. and F. Magdoff (2009), The Great Financial Crisis , Monthly Review Press, New York. 

Herrera, R. (2011a), "A Critique of Mainstream Growth Theory: Ways out of the Neoclassical Science(-Fiction) and Towards Marxism", Research in Political Economy , vol. 27, n° 1, pp. 3-64. 

–(2011b), "Tendances de l'économie états-unienne sous la mandature de Barack H. Obama", Recherches internationales , n° 91, July-September, pp. 151-169, Paris. 

–(2010a), Dépenses publiques et croissance économique , L'Harmattan, Paris. 

–(2010b), Un autre capitalisme n'est pas possible , Syllepse, Paris. 

–(2007), "War and Crisis", Political Affairs , vol. 86, n° 4, pp. 34-38. 

–(2005), "When the Names of the Emperors were Morgan and Rockefeller", International Journal of Political Economy , vol. 34, n° 4, pp. 25-49, Winter. 

Herrera, R. and P. Nakatani (2008), "La Crise financière : racines, raisons, perspectives", La Pensée , n° 353, pp. 109-113. 

Krugman, P. (2009), The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008 , W.W.Norton & Co., New York. 

Mampaey, L. and C. Serfati (2004), "Les Groupes de l'armement et les marchés financiers", in F. Chesnais (ed.), La Finance mondialisée , La Découverte, Paris. 

Nakatani, P. and R. Herrera (2007), "What Rich Countries Owe Poor Ones", Monthly Review , vol. 59, n° 2, pp. 31-36.Notas 
1- Para uma discussão destes argumentos, do ponto de vista teórico e empírico, ler: Herrera (2010a, b). 
2- Exemplos: -33,84% registados para o Dow Jones Indus, -39,76% para S & P 500 e -40,54% para o NASDAQ entre 1 de Janeiro de 2008 e 1 de Janeiro de 2009. 
3- Ver os relatórios sobre este assunto redigidos pelo Center Europe – Third World (CETIM): http://www.cetim.ch
4- Ver, por exemplo, as estimativas (3,0 milhões de milhões de dólares) propostas pelo Prémio Nobel Joseph Stiglitz.
5- Ver o sítio web IVAW: http://ivaw.org/ . E também o apelo à paz: http://appealforredress.org./index.php
6- Ler, por exemplo, os comentários de Rockwell e Rozeff, do von Mises Institute. 

[*] Investigador do CNRS. Documento de trabalho do Centre d'Economie de la Sorbonne. O original (em inglês) pode ser descarregado aqui (PDF, 525 kB). Tradução de JF. 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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22 de abr. de 2013

Quatro sinais de que o neoliberalismo está (quase) morto

Resistir - [Sameer Dossani] Embora Margaret Thatcher já não esteja entre os vivos, sua ideologia permanece. Essa ideologia – conhecida hoje como neoliberalismo,"fundamentalismo de mercado livre" na frase cunhada por George Soros – é singularíssima.


Além das crenças religiosas, não há qualquer exemplo de uma ideologia que tenha sido tão amplamente refutada e ainda assim mantenha uma aura de respeitabilidade.

A premissa básica do neoliberalismo – que "mercados livres" conduzem a melhor crescimento, mais prosperidade e mesmo mais igualdade – sempre foi ficção. Como Ha-Joon Chang, economista de Cambridge, reiteradamente apontou, não há tal coisa como um mercado livre. Nem há qualquer exemplo de um país que se tenha desenvolvido seguindo os dogmas neoliberais da privatização, liberalização e cortes orçamentais. Ao invés disso os países tradicionalmente têm utilizado uma combinação de subsídios, tarifas e investimento financiado por dívida para impulsionar indústrias e aproveitar sua vantagem comparativa para a produção de mercadorias mais avançadas.

Apesar da história, neoliberais argumentam que só os mercados deveriam determinar coisas como salários e que as corporações e seus proprietários deveriam poder operar como quisessem. Países desenvolvidos que adoptaram dogmas neoliberais depois de 1980 viram os salários estagnarem quase tão rapidamente quanto os lucros das corporações disparavam.

No mundo em desenvolvimento era muito pior. A África sofreu duas décadas de estagnação económica como resultado directo de ser forçada a seguir estas políticas, com os latino-americanos e asiáticos a fazerem não muito melhor. A década passada viu alguma melhoria, mas a comunidade global ainda está bem atrás de onde deveria estar em termos de erradicar a fome e doenças evitáveis.

Mas a era neoliberal pode, finalmente, estar a aproximar-se do seu fim há muito esperado. Eis porque:

1) O FMI admitiu que cortes orçamentais nem sempre são a resposta. 

O FMI durante mais de três décadas forçou países a reestruturarem suas economias a fim de se alinharem aos dogmas neoliberais. Eles, em particular, obrigaram países endividados a cortarem orçamentos antes de poderem tomar emprestado junto a mercados de capitais para reembolsar credores. As frases que burocratas e políticos inventaram para vender esta ideologia são agora clichés: "Governos não podem gastar mais do que ganham", "Todos nós precisamos apertar os cintos", etc, etc. Com o corte da despesa do governo, continua a estória, os países abrem espaço para aumento dos gastos do sector privado e a economia cresce.

Embora estudos anteriores do FMI tenham chegado a conclusões semelhantes, só em Janeiro de 2013 o economista chefe do FMI publicou o que equivale a um "mea culpa". Descobriu que diminuição do investimento público é realmente um caminho muito bom para prejudicar perspectivas de desenvolvimento económico ao invés de aumentá-las. Uau!

E há uma outra faceta na estória. Durante os últimos anos, decisores têm citado um documento de economistas de Harvard que sublinham ostensivamente os perigos de países tomarem demasiado emprestado a fim de financiar despesas públicas. O documento sugere especificamente um ponto de ruptura – quando a dívida atinge os 90% do PIB – para além da qual as economias sofreriam devido às suas despesas excessivas. O documento tem sido citado por responsáveis públicos de todo o globo a fim de justificar cortes orçamentais. Mas verificou-se que as conclusões do documento resultavam de uma série de erros, um dos quais foi esquecerem-se de actualizar um cálculo numa folha de Excel. Quando os dados correctos são colocados no lugar, as conclusões mais ou menos desaparecem. Duplo uau!

2) A conferência do desenvolvimento de Doha está morta 

Em Novembro de 2001 a Organização Mundial do Comércio lançou a sua "Conferência do desenvolvimento de Doha" ("Doha development round"). Apesar do seu nome, a conferência de Doha acerca de tudo menos desenvolvimento. Em lugar alto na agenda havia coisas como remover protecções sociais e ambientais, eliminar subsídios para agricultores pobres e assegurar que grandes companhias farmacêuticas pudessem manter patentes (e aumentar muito o custo das mesmas) sobre remédios salvadores de vidas.

Com a ajuda de activistas progressistas de Seattle a Hong Kong, e devido à enorme revolta de países em desenvolvimento na conferência ministerial de Cancun da OMC, Doha está mais ou menos morta e a OMC está num impasse. Isso é uma grande notícia para aqueles que querem ver o comércio justo como oposto ao "livre comércio" e pretendem acordos comerciais que colocam o desenvolvimento e os direitos humanos em primeiro lugar. O desafio agora é propor uma estrutura (e talvez mesmo um mecanismo) para a regulação multilateral do comércio global que dê mais prioridade a direitos humanos do que a lucros corporativos.

3) Países estão cada vez mais a comerciar em divisas locais 

Além do FMI, um meio de os EUA manterem seu controle sobre o sistema económico global é a supremacia do US dólar. Certas transacções devem ser feitas em US dólares – comprar petróleo por exemplo – e o US dólar ainda é visto como a divisa global mais segura. O resultado é que o valor do dólar permanece artificialmente alto, aumentando o poder de compra dos consumidores estado-unidenses e o desejo de toda a gente em vender aos EUA.

Esta situação não beneficia quase ninguém (nem mesmo os consumidores dos EUA) e alguns governos começaram a procurar alternativas. Acordos para começar a comerciar em divisas locais foram negociados entre o Brasil e a China, a Turquia e o Irão, a China e o Japão, e os países BRICS. Embora alguns destes acordos estejam apenas a iniciar, se implementados eles representam um desafio significativo ao status quo.

4) A crise de 2007-2008 demonstrou sem qualquer dúvida que mercados não se regulam a si próprios. E a Islândia provou que há um outro caminho. 

A crise financeira de 2007-08 está longe de ser a primeira crise financeira da era neoliberal. De facto, seria rigoroso chamar a era neoliberal de "era das crises financeiras". Desde o México em 1982, a outros países latino-americanos logo após, ao colapso das bolsas de valores dos EUA em 1987, ao Japão em 1990, à crise financeira asiática de 1997, à da Rússia e do Brasil em 1998-99, à Turquia e Argentina em 2000-2002, ao colapso da bolha da dot.com, dificilmente houve algum momento desde 1980 em que não houvesse uma crise financeira a acontecer em algum lugar. O que habitualmente acontece em tais tempos é que governos adoptam medidas para proteger as elites (habitualmente os banqueiros que realmente provocaram as crises) e comutam o fardo do pagamento dos seus custos para o público em geral. A crise actual é um bom exemplo.

Mas, ao contrário das crises anteriores, há indicações de que desta vez podemos estar a ver uma mudança de sistema. A primeira delas é simplesmente a escala da crise. A bolha habitacional dos EUA que entrou em colapso representou cerca de US$8 milhões de milhões (trillion) em riqueza artificial. Isso é mais de 11% do PIB global e sem contar com as bolhas habitacionais que entraram em colapso na Europa e alhures. Isto é um fracasso do mercado numa escala maciça.

Desta vez há também um exemplo de um país que protegeu os seus cidadãos, prendeu os seus banqueiros e está a obter resultados muito melhores. O país, a Islândia, junta-se à Argentina como um dos únicos países a incumprir dívidas resultantes de crise financeira. Os desastres que "toda a gente" estava à espera (não acesso a mercados de divisas, investidores pondo a Islândia na lista negra, etc) nunca se materializaram, mostrando que mesmo pequenos países podem enfrentar o cartel internacional de credores e viver para contar a história.

A Islândia demonstra que não há nada de natural acerca do neoliberalismo. A decisão de proteger elites dos efeitos dos mercados enquanto utiliza-se aqueles mesmos mercados para punir todas as outras pessoas é uma injustiça política, não uma lei natural.

E é esta injustiça que assegura que o neoliberalismo seguirá o mesmo caminho do pássaro dodó. Em última análise, mercados são apenas um contrato social, como o casamento. E assim como o movimento rumo à igualdade no casamento agora parece inevitável, a reforma drástica do modo como nos relacionamos com mercados está a caminho.

[*] Trabalha na ActionAid Internacional, uma organização global anti-pobreza. Desde 1966 tem feito campanhas contra políticas neoliberais nos EUA, Canadá, Índia e Filipinas. Os pontos de vista supra não reflectem necessariamente os da sua organização.        


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20 de abr. de 2013

Meu caminho para Marx

Georg Lukács 


“O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado a cada dia, assimilado a cada hora, a partir da práxis.” 

A relação com Marx é a verdadeira pedra de toque para todo intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a ela. A seriedade, o escrúpulo e a profundidade com que ele se dedica a esta problemática nos indica em que medida ele quer, consciente ou inconscientemente, esquivar-se de um claro posicionamento com relação às lutas da história atual. Os esboços biográficos que tratam da relação com Marx, da luta espiritual com o marxismo, dão-nos, por vezes, um quadro que, enquanto contribuição à história da luta social dos intelectuais no período imperialista, possui um interesse geral, mesmo quando, como no meu caso, a biografia em si não tenha nenhuma pretensão de interessar ao público.

Foi ao terminar os meus estudos secundários que se deu o meu primeiro encontro com Marx (com o Manifesto Comunista). A impressão foi extraordinária e, quando estudante universitário, li então algumas obras de Marx e Engels (como, por exemplo, O 18 Brumário, A Origem da Família) e, em particular, estudei a fundo o primeiro volume de O Capital. Esse estudo me convenceu rapidamente da exatidão de alguns pontos centrais do marxismo. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a teoria da mais-valia, com a concepção da história como história da luta de classes e com a articulação da sociedade em classes. Naquele momento, como é óbvio no caso de um intelectual burguês, essa influência se limitou à economia e, sobretudo, à “sociologia”. Considerava a filosofia materialista – não distinguia o materialismo dialético do não dialético – completamente superada, enquanto teoria do conhecimento. A tese neokantiana[2] da “imanência da consciência” ajustava-se perfeitamente à minha posição de classe na época; não a submetia a qualquer exame crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de partida de toda e qualquer colocação do problema gnosiológico. 

Na verdade, mantinha uma constante suspeita frente ao extremado idealismo subjetivo (tanto o da escola neokantiana de Marburgo quanto o da teoria de Mach), uma vez que não conseguia compreender como era que o problema da realidade podia ser definido, considerando-a simplesmente uma categoria imanente da consciência. Mas, embora isso não me tenha conduzido a conclusões materialistas, acabou levando-me muito mais a uma aproximação com aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema de forma irracionalista e relativista e, até muitas vezes, mística (Windelband-Rickert, Simmel, Dilthey). A influência de Simmel[3], de quem fui discípulo direto, deu-me ainda a possibilidade de “inserir” numa tal concepção de mundo tudo o que havia assimilado de Marx nesse período. A filosofia do dinheiro de Simmel e os escritos sobre o protestantismo de Max Weber foram os meus modelos para uma “sociologia da literatura”, na qual os elementos derivados de Marx estavam mais uma vez presentes, mas tão diluídos e empalidecidos que eram quase irreconhecíveis. 

Seguindo o exemplo de Simmel, eu, de um lado, separava o quanto possível a “sociologia” do fundamento econômico, concebido de modo bastante abstrato, e, de outro lado, via na análise “sociológica” apenas o estágio inicial da verdadeira e real pesquisa científica no campo da estética (História da Evolução do Drama Moderno, 1909; Metodologia da História Literária, 1910, ambas em húngaro). Os meus ensaios publicados entre 1907 e 1911 oscilavam entre este método e um subjetivismo místico. 

Era natural, com tal desenvolvimento da minha concepção de mundo, que as impressões que tivera da leitura de Marx, na minha juventude, fossem empalidecendo cada vez mais e acabassem por desempenhar um papel cada vez menor na minha atividade científica. Considerava, não menos do que anteriormente, Marx o economista e o “sociólogo” mais competente; mas a economia e a “sociologia” ocupavam neste período um papel insignificante nesta atividade. Ao leitor não interessam as singularidades e as diferentes fases deste desenvolvimento, através do qual este idealismo subjetivo me conduziu a uma crise filosófica. Mas esta crise – sem que de imediato eu soubesse – foi determinada objetivamente pela manifestação mais intensa das contradições imperialistas e foi precipitada com a eclosão da Guerra Mundial[4]. Decerto, esta crise se manifestou, de início, apenas na minha passagem do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo (Teoria do Romance, escrita entre 1914-15) e, naturalmente, Hegel adquiriu para mim uma importância cada vez maior, em particular a Fenomenologia do Espírito. O meu segundo estudo intenso de Marx começa com a minha compreensão, cada vez maior, do caráter imperialista da Guerra, com o aprofundamento dos meus estudos de Hegel, no decorrer dos quais me aproximei também de Feuerbach, embora, naquele momento, me interessasse apenas pelo aspecto antropológico. Os escritos filosóficos da juventude de Marx passaram a ser o ponto central de meu interesse, embora ainda estudasse com paixão a grande Introdução à Crítica da Economia Política. Desta vez, porém, não se tratava mais de um Marx visto da lente de Simmel, mas através da perspectiva hegeliana. Marx deixava de ser o “eminente especialista”, o “economista e sociólogo”; já começava a delinear-se para mim o grande pensador, o grande dialeta. No entanto, naquela época, ainda não compreendia o significado do materialismo para a concretização, unificação e colocação coerente das questões dialéticas. O máximo que cheguei a postular foi uma prioridade – hegeliana – do conteúdo sobre a forma e procurei, sobre base essencialmente hegeliana, sintetizar Hegel e Marx numa “filosofia da história”. Essa tentativa adquiriu uma tonalidade particular porque no meu país, a Hungria, a ideologia “socialista de esquerda” mais influente era o sindicalismo de Ervin Szabó[5]. Os seus escritos sindicalistas, apesar de terem influenciado os meus “ensaios de filosofia da história” com vários elementos positivos (como, por exemplo, o fato de ter-me posto em contato com a Crítica do Programa de Gotha), deram um caráter acentuado de subjetivismo abstrato e, portanto, idealístico-ético aos meus escritos. Isolado, enquanto intelectual universitário, do movimento operário ilegal, não pude tomar conhecimento, durante o conflito, nem dos escritos dos espartaquistas, nem dos ensaios de Lênin sobre a Guerra. Li, porém, com efeitos profundos e duradouros, os escritos, anteriores à Guerra, de Rosa de Luxemburgo. Li O Estado e a Revolução de Lênin somente no período revolucionário de 1918-19. 

As revoluções de [19]17 e [19]18 surpreenderam-me no bojo dessa efervescência ideológica. Em dezembro de 1918, depois de breve hesitação, ingressei no Partido Comunista Húngaro e, desde então, permaneci nas fileiras do movimento operário revolucionário. O trabalho prático logo me obrigou a dedicar-me aos escritos econômicos de Marx, a um estudo mais profundo da história, da história econômica, da história do movimento operário etc., empenhando-me, assim, numa contínua revisão dos fundamentos filosóficos. Todavia, essa luta para dominar a dialética marxista prolongou-se por muito tempo. As experiências da revolução húngara[6] mostraram-me claramente a fragilidade de todas as teorias sindicalistas (a função do partido na revolução), mas persistiu em mim, ao longo dos anos, um subjetivismo ultraesquerdista (por exemplo, minha posição nos debates em 1920[7], sobre a ação parlamentar e a minha atitude em relação ao movimento de março de 1921)[8]. Tudo isso me impedia de compreender, de modo correto e verdadeiro, o aspecto materialista da dialética no seu significado filosófico mais abrangente. O meu livro História e Consciência de Classe (1923) mostra muito claramente essa transição. Apesar da tentativa, já consciente, de superar e “eliminar” Hegel através de Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos nesta obra de maneira idealista (dialética da natureza, teoria do reflexo etc.). A teoria de Rosa de Luxemburgo sobre a acumulação do capital, à qual ainda me atinha, misturava-se de modo não orgânico com um ativismo subjetivista de ultraesquerda. 

Somente a íntima adesão ao movimento operário, devida a uma prática de muitos anos, e a possibilidade que tive de estudar as obras de Lênin e pouco a pouco compreender seu significado fundamental propiciaram o terceiro período de meu interesse por Marx. Somente agora, depois de quase uma década de trabalho prático e depois de mais de um decênio de esforço intelectual para compreender Marx, é que o caráter total e unitário da dialética materialista se tornou claro em termo concreto para mim. Mas justamente essa clareza trouxe também consigo o reconhecimento de que o verdadeiro estudo do marxismo só está começando agora e não pode mais parar. Porque, como disse Lênin, com toda razão, “o fenômeno é mais rico do que a lei... e por isso a lei, qualquer que seja, é estreita, incompleta, aproximativa”. Isto quer dizer: quem tiver a ilusão de ter compreendido, de uma vez por todas, os fenômenos da natureza e da sociedade, baseado num conhecimento, por mais vasto e profundo que seja, do materialismo dialético, terá necessariamente se deslocado da dialética viva para a rigidez mecânica, do materialismo abrangente para a unilateralidade do idealismo. O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado a cada dia, assimilado a cada hora, a partir da práxis. Por outro lado, a doutrina de Marx, em sua inatacável unidade e totalidade, constitui a arma para a condução da prática, para o domínio dos fenômenos e de suas leis. Se dessa totalidade for destacado (ou apenas subestimado) um só elemento constitutivo, teremos de novo a rigidez e a unilateralidade. Basta que se perca a relação dos momentos uns com os outros, e lá se vai o chão da dialética marxista sobre o qual apoiamos os pés. “Pois qualquer verdade” – diz Lênin – “se a exagerarmos, se ultrapassamos os limites de sua validade, pode tornar-se um absurdo; aliás, é inevitável que, em tais circunstâncias, ela se torne um absurdo.” 

Passaram-se mais de 30 anos desde o dia em que, jovem ainda, li pela primeira vez o Manifesto Comunista. O progressivo aprofundamento – ainda que contraditório e não linear – das obras de Marx tornou-se a história do meu desenvolvimento intelectual e, portanto, tornou-se também a história de toda a minha vida, na medida em que ela possa ter algum significado para a sociedade. Parece-me que, no período posterior a Marx, a tomada de posição em relação ao seu pensamento deve constituir o problema central de todo pensador que leve a sério a si próprio, e que o modo e o grau com que ele se apropria do método e dos resultados de Marx determinam o seu lugar no desenvolvimento da humanidade. Esse desenvolvimento está determinado pela situação de classe, se bem que essa determinação não é rígida, mas dialética. A nossa posição na luta de classes determina amplamente o modo e o grau que assumimos o marxismo, mas, por outro lado, todo novo progresso nessa adoção nos faz aderir cada vez mais à vida e à práxis do proletariado e redunda beneficamente no aprofundamento da nossa relação com a doutrina marxista (1933). 

[1] “Mein Weg zu Marx” foi publicado na revista moscovita Internationale Literatur, n° 2, em 1933, tendo sido reproduzido em G. Lukács zum Siebzigsten Gebeertstag (Berlim, Aufban, 1955). Com tradução para o italiano por Ugo Gemmelli, foi publicado em Nuovi Argomenti, n° 33, 1958. Tradução para o português, a partir do texto integral traduzido por Ugo Gemmelli in Marxismo e politica culturale (Torino, Einaudi Editore, 1977), de Luiza L. S. Sakamoto, Marilene G. Pottes e M. Dolores Prades. Revisão técnica de Thereza Calvet de Magalhães. Notas da Edição Brasileira (publicada originalmente na Revista Nova Escrita/Ensaio especial – Marx Hoje, ano V, n° 11/12, 1983). 

[2] Naquele período, o neokantismo se constituía na tendência filosófica dominante no mundo de língua alemã; duas escolas principais compunham esta tendência: a escola de Marburgo, da qual faziam parte Cohen e Natorp, e a escola de Heidelberg, cujos principais exponentes eram Windelband e Rickert. 

[3] Lukács foi aluno de Simmel em Berlim, durante os anos 1909-10, assim como teve aulas em Heidelberg, no ano de 1913, com Windelband e Rickert, quando travou conhecimento com Emil Lask e Max Weber. 

[4] Lukács refere-se aqui ao estado de desespero produzido pela I Guerra Mundial, a qual repudiou de maneira veemente e global; a perspectiva de uma vitória da Alemanha tinha o efeito de um pesadelo. Vivia em permanente tensão diante da situação mundial. Só o ano de 1917 traria a solução de problemas que até então considerava insolúveis, conforme ele mesmo explicita no Prefácio de 1962 a Teoria do Romance. 

[5] O contato de Lukács com Erwin Szábo data de 1902. Naquele ano Lukács se inscreveu na organização Estudantes Socialistas Revolucionários de Budapeste, organizada por Szábo, influente anarcossindicalista húngaro. 

[6] A República Soviética da Hungria, proclamada em março de 1919 e liderada por Béla Kun, durou apenas alguns meses, até agosto do mesmo ano. Lukács participou ativamente deste processo, tornando-se vice-comissário do povo para a área de educação, e depois da demissão em junho do social-democrata Zsigmond Kunfi, ocupa o seu lugar à frente do ministério. 

[7] Lukács refere-se, aqui, por certo, em especial, ao artigo “Zur Frage des Parlamentarismus” (“Sobre a questão do parlamentarismo”), de 1920, publicado pela primeira vez na revista Kommunismus, em Viena, de cujo Conselho Editorial era membro. Neste texto, Lukács defendia a ruptura total com todas as instituições burguesas, inviabilizando, assim, qualquer ação política legal. Lênin criticou violentamente este artigo. 

[8] Trata-se da insurreição da direção esquerdista, em março de 1921, do Partido Comunista Alemão, que redundou numa sangrenta e violenta derrota do movimento operário.