16 de fev. de 2012

Eleições, armadilha para tolos

O Diário - [Jean Salem] O filósofo marxista Jean Salem publicou recentemente um novo livro: "Eléctions, piége à cons". Publicamos a Introdução desse importante texto, que coloca uma questão central: nos dias de hoje, em tantos lugares da Europa, é através dos mecanismos eleitorais das democracias burguesas que forças fascistas e de extrema-direita vêm assumindo uma importante parcela do poder político.


Em criança, depois em adolescente, e talvez mesmo até ao início dos anos 1980, interrogávamo-nos como fora possível que povos amassados em cultura, como os alemães em especial, tenham sido incapazes de prever aquilo que veio a ser feito, aquilo que foi cometido em seu nome antes e durante o período da Segunda Guerra Mundial. De forma acessória, essa interrogação servia para moderar os ardores daqueles que estavam sempre disponíveis para se inclinar perante a mais insignificante emoção popular e, em particular, perante aquelas que pareciam indicar a insatisfação de tal ou tal fracção da população nos países do "socialismo real". E, sobretudo, ela proporcionava aos mais argutos a oportunidade para relembrar em cada dia uma evidência que fere, ao que parece, o preconceito democrático: a de que os povos podem equivocar-se. E podem, consequentemente, votar mal... Hitler (podemos, naturalmente, lamentá-lo) não se apossou do poder por meio de um golpe de Estado! Na eleição presidencial de Março-Abril de 1932 tinha obtido 2,75 milhões de votos, o que representava 37,3% do eleitorado, mas tinha sido ultrapassado, em qualquer caso, pelo marechal Hindenburg. Num contexto marcado, entretanto, pelas terríveis acções violentas dos bandos nacional-socialistas (contavam-se às centenas os mortos que estes tinham provocado apenas no decurso do mês de Julho, em confrontos de rua desde a Prússia até Altona, a norte de Hamburgo), o NSDAP obteve igualmente 37,3% dos votos nas eleições de 31 de Julho de 1932.

De forma ainda mais genérica, o tão prosaico percurso dos regimes ditos "representativos" só pode levar as pessoas de bom-senso a pensar, com Alexis de Tocqueville, que "aqueles que encaram o sufrágio universal como uma garantia da qualidade das escolhas iludem-se completamente". O "voto universal", acrescentava Tocqueville, "possui outras vantagens, mas não essa" (De la démocratie en Amérique, II parte, cap. 5, Vrin, t. I, p 153). Porque ninguém pode afirmar que a maioria tem sempre razão. Sobretudo quando essa maioria é tão evidentemente fabricada como o é nos dias de hoje. Sem falar da imensa massa daqueles que deixaram de participar no jogo eleitoral, tão frequentemente enganador, frustrante, entorpecedor mesmo. A tradição filosófica em que me integro aliou constantemente, pelo menos até ao século XVIII, um muito grande optimismo naturalista a um carregado pessimismo em matéria de antropologia. Para o materialismo do Ancien Régime, para o epicurismo antigo como para os grandes senhores do libertinismo, não se trata em nenhuma circunstância de imaginar que, de progresso em progresso, todo o indivíduo acederá às luzes da razão, à sabedoria e à felicidade. Os "déniaisés" ("desparvecidos"), como se designavam a si próprios, sabem bem que a religião é um instrumento do poder de Estado; mas que o povo, têm eles o cuidado de acrescentar de imediato, não deixa de crer nela e de continuar a ignorar os seus truques. Em resumo, será apenas com as Luzes, e a fortiori com o comtismo, o marxismo e outras doutrinas racionalistas datando do séc. XIX que se formou, entre os adeptos do materialismo filosófico, a ideia de uma possível conversão dos humanos a opções políticas justas, morais, e susceptíveis de trazer a felicidade a todos.

E eis entretanto o estado em que estamos: os herdeiros do fascismo e do nacional-socialismo voltam a levantar a cabeça na Europa... Aqui, é um movimento fundado por um antigo torcionário que obtém, desde há mais de vinte anos, entre 10% e 18% dos votos expressos. Acolá, o NPD, o Partido nacional democrático alemão, obtém 9,2% dos votos nas eleições de 2004, no Saxe. Desde 1986 que os resultados obtidos pelo muito mal designado Partido austríaco da liberdade (FPO) não cessam de aumentar em eleições legislativas, chegando a atingir 27% dos votos expressos em 1999. Nessa altura o FPO era a segunda força política na Áustria. Depois de uma descida transitória ressurgiu em força nas legislativas de 2008 com um resultado de 18%, ao qual devem ser acrescentados os 11% recolhidos pela Aliança para o Futuro da Áustria (BZO) – ela própria resultante de uma cisão do FPO – o que dá um total acumulado de 29% dos votos expressos a favor da extrema-direita! Na Noruega também, o FrP, o Partido do progresso, impôs-se como a segunda força política do país ao alcançar 23% dos votos expressos quando das eleições legislativas de 2009. Nos Países-Baixos, finalmente, 17% dos votos foram para a extrema-direita nas eleições europeias de Junho de 2009. Por todo o lado, ou quase, há governos aos quais não só não repugna formar alianças com a extrema-direita ou mesmo a pedinchar o seu apoio (Dinamarca, Hungria); há governos – em geral eleitos, é certo, ou pelo menos que alcançaram o poder por meio de eleições – que entregam pastas de ministérios a racistas certificados ou a autênticos fascistas reconvertidos de fresca data em muito sinceros democratas (Itália). Por toda a parte, o perigo ainda-rastejante-mas-já-muito-pouco do regresso da peste negra ou da chegada das suas reencarnações pós-modernas (Bélgica, Suíça).

Para sintetizar, existe já um problema que pode legitimamente agitar os nossos neurônios: as campanhas eleitorais, as boas intenções e os escrutínios que aí vêm serão suficientes para evitar que aqueles que militam à esquerda, neste XXIº século que começa, não venham a acabar em campos (estilo antigo) ou em estádios (estilo chileno)? Tanto mais que, como me dizia um estudante no decurso de uma prova oral bastante frustrante, "o capitalismo tem um grande problema: foi demasiado longe". Ou, dito por outras palavras, poderia culminar em apocalipse...E nem os votos "úteis" nem os pânicos sem grande futuro dos pequenos burgueses poderão constituir uma barreira eficaz contra o que aí vem! É pensando nisso sobretudo, ou seja, no estado vacilante da nossa civilização que eu gostaria aqui de falar:

1- Daquilo que eu chamarei de boa vontade o actual circo eleitoral;
2- Da confiscação do poder que este circo autoriza e realiza perante nós;
3- Do regime de eleição ininterrupta no qual se faz viver nos dias de hoje o cidadão das nossas esgotadas democracias, regime que é parte integrante de um período de crise sobreaguda do capitalismo, de um período de perturbações e de ansiedade, de um período em que se sente o odor que antecede a guerra.

FONTE: Diário Liberdade

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15 de fev. de 2012

Rousseau, Pinheirinho e o Direito

Por Mauro Iasi.
 
Era um pouco antes das seis horas da manhã do dia 22 de janeiro. As tropas se alinharam para cumprir a reintegração de posse de uma área na qual viviam cerca de 9 mil pessoas há oito anos. Suas casas humildes se enfileiravam por ruas bem traçadas, havia se erguido um centro comunitário, creches e escolas.

O terreno é parte da massa falida de uma empresa que enlatava legumes e pertencia a um empresário chamado Naji Nahas, conhecido por suas fraudes. O terreno não recolhia impostos, estava abandonado há trinta anos e somava uma dívida de quinze milhões.
Quase dois mil soldados, carros de combate e helicópteros cercavam o local e o folheto da polícia militar do governo Alckimin explicava que a reintegração era uma “ordem da justiça” e que a PM estava ali apenas para “proporcionar segurança e tranquilidade”. Indiferente ao fato de haver uma liminar e uma proposta concreta de regularização da área, a Prefeitura e o Governo do Estado mantiveram a ordem de reintegração emitida pela senhora juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos.
Os moradores eram organizados e nestes oito anos souberam lutar por seus direitos e mais que isso, construíram através de sua luta um compromisso e solidariedade que cimenta a unidade de nossa classe. Por isso exerceram seu sagrado direito de resistir. Foram atacados, retirados violentamente de seus lares, seus pertences amontoados na rua, deslocados para centros de triagem. Um representante das autoridades ao ser indagado sobre o que seria daquelas pessoas, para onde iriam, responde que isso não havia sido planejado, as pessoas deviam se inscrever nos planos de habitação existentes e esperar uma vaga.
Ainda que patente uma série de ilegalidades e omissões que por si mesmas levariam ao questionamento meramente jurídico do ocorrido (parece que o Ministério Público está acionando o poder municipal por sua omissão), a questão é mais profunda que uma trapalhada jurídica e uma juíza prepotente e arrogante.
O símbolo do Direito é uma mulher com uma venda que lhe cobre os olhos, uma balança e uma espada. Sempre brinquei com meus alunos que cada um escolhe a simbologia que lhe agrada, mas é temerário entregar uma espada a uma senhora cega. A simbologia indica que a justiça deve ser aplicada sem olhar a quem, ou seja, pela objetividade fria da lei, no caso se cabia o recurso à reintegração de posse, o direito de propriedade de quem administra a massa falida, a pertinência da aplicação da medida e outros aspectos do universo jurídico, não interessando quem se beneficiará da medida ou quem sofrerá com ela.
Mas, o que esta senhora deixou de ver em seu pedestal de suposta neutralidade? Que a balança pendia para os representantes de um empresário fraudulento que abandonou um terreno sem recolher impostos por mais de trinta anos de um lado, enquanto que no outro prato da balança encontravam 9 mil pessoas com seus filhos, famílias e pertences modestos que haviam, no meio do caos de uma política habitacional incompetente e irresponsável, encontrado uma solução para um direito elementar: a moradia.
O que mal se disfarça e que tal episódio revela com clareza é o caráter de classe do Direito. O senhor Naji Nahas ficou conhecido por sua habilidade de contornar a lei, os trabalhadores do Pinheirinho não tiveram a mesma sorte. Apesar de ter os olhos vendados, a pontaria desta senhora é impressionante: cada espadada, um pobre.
O fundamento de tudo isso está em um direito: o de propriedade. Em algum papel está a propriedade de um industria chamada Seleta S/A, do senhor Nahas, em outro papel o destino de tal propriedade, mas em papel algum pode-se ler o destino daqueles trabalhadores que, vendo um enorme terreno abandonado, ousam dizer que tem o dever de garantir uma moradia aos seus familiares.
Pelos labirintos inescrutáveis do Direito, espaço no qual Bourdieu define que se opera a luta do direito para dizer o direito, de ações, processos, recursos, mandatos e sentenças, ao final se revela a garantia dos interesses da classe proprietária enquanto aos trabalhadores resta a truculência das forças policiais que estariam lá para garantir uma “ordem da justiça” e desta forma a “segurança e a tranquilidade” dos senhores proprietários.
No meio da desocupação, entre balas de borracha, bombas, escudos e cassetetes, um senhor genebrino, nascido em 1712,  desvendava o segredo:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: ‘isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, quantas misérias e horrores não teriam poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar este impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos são para todos, e que a terra é de ninguém!’” (Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens).
Logo depois de proferir tal frase, a polícia militar o abateu com um violento golpe e sob o efeito das bombas e da fumaça foi levado junto aos demais enquanto um outro senhor, este um francês, concluía: “a propriedade é um roubo”. Dois alemães de braços abertos recebiam seus colegas e, condescendentes com sua ingenuidade, batiam em seus ombros doloridos dizendo: “eu sei, eu sei…”. Logo mais adiante, dois russos com ares compenetrados pensavam os próximos passos.
Longe dali, um no palácio do governo, outra em seu tribunal, os funcionários do capital festejam sua vitória. Nossa classe anota seus nomes, junto ao de todos aqueles que se omitem e legitimam este crime, e aguarda.
Quando os ruídos de bombas e balas cessaram e a fumaça baixou, com os pobres novamente resumidos a situação de penúria, desamparo e carência que lhes cabe nesta ordem do capital e da propriedade, cantamos em tom de desafio junto com Violeta Parra:
Yo que me encuentro tán lejo, 
esperando la noticia,

me viene decir en la carta,
 que en mi patria no hay justicia,

los hambrientos piden el pan, 
plomos le da la milicia, si.
(…)
La carta que ha recebido,
 me pide contestación,

yo pido que se propaguen, 
por toda la población,

que Geraldo és un sanguinário, 
en toda la generación, si.
Por suerte tengo guitarra, 
para llorar mí dolor,

también tengo muchos hermanos,
 fuera de él que se engrilló,
todos son comunistas,
 con el favor de mí Diós, si.
Rio de Janeiro, fevereiro de 2012 ( trezentos anos depois do nascimento de Rouseau)
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.


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10 de fev. de 2012

ORGANIZAR O BLOCO PROLETÁRIO E POPULAR PARA DERROTAR O SOCIAL-LIBERALISMO DO PT


Greves nas PMs do Nordeste, em especial o impasse na Bahia, agora a greve que se constrói no Rio de Janeiro, envolvendo policiais militares, bombeiros e policiais civis, todos eles mal remunerados e pessimamente equipados, o desespero privatista do governo Dilma, o aprofundamento de alianças com setores reacionários da sociedade brasileira, as concessões cada vez maiores ao capital financeiro, ao agronegócio e aos monopólios nacionais e internacionais, colocam a nu a incapacidade do governo petista de construir uma alternativa fora da lógica de governança para o capital e de conciliação com a autocracia burguesa. A Frente com a burguesia e sua incorporação ao Bloco Burguês  revelou a incapacidade do PT de ser condutor de qualquer alternativa inovadora para o país.

A forma societal brasileira, de extração colonial, vem determinando a subalternização do novo ao velho, uma morfologia que repõe  a estrutura social no contexto de uma legalidade subsumida à uma burguesia cujo projeto político-econômico é integrar-se à economia mundial como agente complementar do imperialismo ou se quiserem, a afirmação de uma burguesia subiimperialista. O Moderno sem o Novo 

No âmbito sócio-político o preço que os trabalhadores pagam por essa opção genética de inserção subordinada ao capitalismo  internacional é altíssimo. Aliás sempre foi. As alternâncias de formas políticas, ora bonapartistas, ora autocrático-institucional nunca possibilitaram o avanço das forças populares e de auto-organização dos trabalhadores porque intrinsecamente voltadas à hegemonia dos blocos burgueses que se sucederam no poder, ao longo da história brasileira.

A campanha eleitoral de 2002 com a vitória de Lula, abriu a possibilidade de se romper com a trajetória da hegemonia das frações burguesas no Brasil e de colocar o poder em disputa, a favor das grandes massas trabalhadoras. Mas por sua debilidade estrutural e pela preponderância de um projeto político reformista e socialdemocrata-tardio, acabou levando  o PT para o Bloco Burguês, transformando-se num reacionário Partido da Ordem e do projeto subiimperialista. Um melancólico fim, para o que foi promessa de Novo, mas que acabou no Velho Irajá.               

Mas afirmar o que hoje é óbvio, isto é,  o reformismo e a conciliação de classe no DNA petista, não exime as esquerdas antagonistas de crítica. Mergulhada em debates principistas, a maioria das esquerdas que se assumem socialista e revolucionária, objetivamente pouco fizeram para colocar na ordem do dia de seus programas políticos a pergunta central:  Que Fazer ? Submersas nas imediaticidades das lutas pontuais e amesquinhadas, das disputas dos aparelhos sindicais e de questionáveis "mandatos parlamentares de esquerda"  olham para as árvores e deixam de ver o bosque à frente. De um lado, o "hegemonismo" sindicaleiro, centrado em setores não fundameitais da estrutura produtiva; de outro o cretinismo parlamentar e o principismo dos puros. De todos os lados, o hiato de hegemonia de um projeto revolucionário, evidenciado na incapacidade de construir um programa mínimo de unidade de ação.

Fica evidente a falta de proposta concreta frente aos problemas e acontecimentos políticos imediatos, como por exemplo, os que envolvem as mobilizações de policiais por melhores salários. Ainda que possam haver militantes de esquerda nessas mobilizações, os contatos políticos das principais lideranças desses militares estão sendo feitos com parlamentares burgueses, de partidos conservadores e reacionários, como o PR e o PSDB.   

Se a esquerda não consegue incidir hegemonicamente no segmento mais avançado do movimento operário, o que se pode dizer em relação às movimentações da soldadesca? 

No contexto do Que Fazer há que se dar respostas concretas para a situação concreta do país. Antes de mais nada a necessidade de construir uma Bloco Político de Classe, Socialista e Antagonista, que unifique as forças populares e de esquerda, que ponha a questão política dos trabalhadores no centro das discussões da sociedade brasileira, hoje, cooptada pela conciliação social-liberal do petismo. Não a política eleitoreira oportunista e personalista, ainda um cangro não extirpado da própria esquerda que se diz socialista, mas a política que prioriza a organização dos trabalhadores em organismos de luta e de construção de hegemonia, como sindicatos classistas, movimentos sociais de luta, como setores do MST e do MTS, movimentos populares de gênero, movimento estudantil, etc.

O Bloco Proletário-Popular a ser construído deve priorizar a organização e a luta, e como mote essencial, o socialismo. Nas contradições da luta de classes do Brasil hodierno ou organizamos a classe com unidade revolucionária, ou seremos responsáveis por mais uma derrota do proletariado. Esse é o nosso desafio. Essa é a tarefa.  


GRIFO MEU (PK)
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6 de fev. de 2012

Alexandr Yakovlev e o anti-comunismo cavernícola

por Miguel Urbano Rodrigues 

Para a tragédia histórica que foi a derrota do socialismo na URSS contribuíram muitos e muito complexos factores de ordem social, política, económica, ideológica. E contribuiu também a traição de dirigentes que, fingindo-se comunistas, alcançaram posições-chave a partir das quais lançaram o assalto final. Um dos mais destacados é Alexandr Yakovlev.

O russo Alexandr Yakovlev é quase um desconhecido em Portugal e nos demais países da Europa Ocidental.
Amigo íntimo de Mihail Gorbatchov e seu conselheiro principal, desempenhou um papel fundamental no processo contra-revolucionário que conduziu à restauração do capitalismo na Rússia.

Por mero acaso encontrei há dias na livraria de uma pequena cidade alentejana um livro seu editado em Portugal em 2004: "Um Século de Violência na Rússia Soviética" [1].


É compreensível que este manual de anticomunismo tenha sido recebido com entusiasmo nos EUA. Yakovlev na falsificação da História vai além de tudo o que sobre a União Soviética se escreveu sobre o tema.


É esclarecedor que os editores portugueses tenham considerado útil transcrever na contra-capa a opinião sobre este livro de Zbignew Brzezinsky, o conselheiro de segurança nacional do presidente Carter: "A revelação profundamente comovedora e solidamente documentada dos crimes de Lenine e Estaline, escrita por um homem de consciência que fez parte do Politburo nos anos do fim da União Soviética".


Alexandr Yakovlev orgulhava-se de ter persuadido Gorbachov a destruir a URSS através de uma "reestruturação" do regime, a Perestroika, apresentada ao Partido e ao povo soviéticos como iniciativa revolucionária cujo objectivo seria o regresso às origens do leninismo.


Falecido em 2005 com 82 anos, foi durante mais de quatro décadas considerado um comunista exemplar. Membro do Partido desde 1944, entrou no Comité Central dez anos depois, destacando-se em tarefas ligadas à ideologia e à propaganda.


Absteve-se sempre de criticar o regime. Comportava-se como zeloso comunista.


Nomeado embaixador no Canada em 1973, desenvolveu uma amizade fraternal com o primeiro-ministro Pierre Trudeau. Foi em Otawa que conheceu Gorbachov, em l983, durante uma visita àquele país do futuro secretário-geral do PCUS. Transcorridos muitos anos, quando a Rússia já era um país capitalista, Gorbachov revelou que as conversas mantidas com o embaixador o ajudaram muito a compreender que era necessário destruir o regime soviético.


Tais elogios fez de Yakovlev no regresso que Yuri Andropov o chamou a Moscovo e o nomeou director do Instituto de Economia Mundial e de Relações Internacionais da Academia das Ciências da URSS. E em 87, já em plena Perestroika, tornou-se membro do Secretariado e do Politburo do CC do PCUS.


Decidiu então que chegara o momento de tirar a máscara. Da crítica do socialismo passou sem transição ao elogio do capitalismo. Acompanhou Gorbachov na primeira visita aos EUA e as suas catilinárias contra o regime soviético valeram-lhe os títulos de "arquitecto da perestroika" e "pai da glasnost".


A influência que exercia sobre o secretário-geral era tão ostensiva que o ex presidente do Soviete Supremo, Anatoly Lukyanov, me disse durante uma visita minha à Rússia em 1994 que todos "olhavam para Yakovlev quando Gorbachov falava".


O ÓDIO E A CALÚNIA


Ieltsine não escondia a sua admiração por Yakovlev. Mais de uma vez elogiou o trabalho que o autor de The Fate of Marxism in Rússia – publicado pela Universidade de Yale – realizou como presidente de uma Fundação da Democracia Internacional, criada em Moscovo para falsificar a história da URSS.


Mas o ex-presidente russo não podia prever que hoje, sete anos após falecer, Alexandr Yakovlev inspire um sentimento generalizado de desprezo aos intelectuais russos. Mesmo no Ocidente o seu livro Um Século de Violência na União Soviética não é mais considerado um instrumento útil de combate ao comunismo.


No esforço para apresentar a União Soviética como um Inferno mais tenebroso do que o ideado por Dante, Yakovlev gera no leitor uma reacção oposta à visada.


O livro é um grito de ódio. E o ódio não convence, desprestigia.


O panorama de violência que esboça pretende ser baseado em documentação oficial. Mas as fontes a que recorre ou carecem de credibilidade ou as citações feitas são com frequência manipuladas ou truncadas.


Historiadores, filósofos e sociólogos respeitados, russos e ocidentais, publicaram nas últimas décadas trabalhos sérios que permitem já uma visão abrangente sobre as Revoluções Russas de Fevereiro e Outubro de 1917 e os acontecimentos que ficaram a assinalar as sete décadas de existência da União Soviética.


Pensadores como o húngaro Istvan Meszaros e o italiano Domenico Losurdo, de prestigio mundial, – apenas dois exemplos – iluminaram sem paixão os erros e desvios do chamado "socialismo real", e simultaneamente as transformações revolucionarias benéficas que da vitória e desafio bolcheviques resultaram para a Humanidade. Não escondem crimes que ficaram a assinalar esses anos de transição do capitalismo rumo ao socialismo, mas coincidem na conclusão de que a desagregação da URSS foi uma tragédia para a Humanidade que abriu portas à barbárie imperialista.


Antagónico é o berreiro de Yakovlev. Que credibilidade pode merecer um intelectual para o qual a Revolução de Outubro foi um golpe contra-revolucionário.


Na sua opinião, democráticos e progressistas eram os governos do príncipe Lvov e de Kerensky. Para ele a Rússia imperial era uma monarquia constitucional (em fase de acelerado progresso) que se transformou em Fevereiro de 17 numa república democrática.


Poderia o leitor imaginar que o alvo principal deste livro é Estaline. Mas fica transparente que esboçar de Lenine o retrato de um ser demoníaco, brutal, inimigo da humanidade, é o grande objectivo do autor.


Para Yakovlev, "Vladimir Ilich Ulianov (Lenine) dirigente máximo do primeiro governo soviético, após a violenta tomada do poder em 1917" é "o expoente do terror e da violência as massas, da ditadura do proletariado, da luta de classes e de outros conceitos desumanos". Afirma que Lenine criou "campos de concentração para crianças", é responsável pela morte "de milhões de cidadãos russos" e como tal "passível de condenação póstuma por crimes contra a humanidade".


Ao lado de Hitler, coloca Lenine e Estaline como "os piores criminosos do século (…) o século de Caím, o século que viu a Rússia arruinada e o seu modelo de desenvolvimento deitado por terra". A "Rússia – afirma – estava no bom caminho. O que aconteceu não foi que a Rússia se atrasou, foi que os bolcheviques lhe partiram as pernas, lhe esvaziaram o cérebro e o repuseram virado ao contrário".


Lenine é também acusado de estimular a tortura. "Era o próprio Inquisidor Mor – escreve Yakovlev – quem decidia quais as torturas a usar com que detidos, de modo a obter confissões de culpa e era ele pessoalmente que averiguava o bom cumprimento das suas ordens".


Este livro de pesadelo finda com 15 parágrafos em que o autor responsabiliza o bolchevismo por crimes monstruosos.


Não resisto a transcrever o primeiro: "O bolchevismo não pode escapar à responsabilidade pela contra-revolução, pelo violento golpe contra-revolucionário de 1917".


É lamentável que um livro tão profundamente reaccionário tenha sido publicado, com um prefácio altamente elogioso, por uma editora portuguesa tradicional.


(1) Alexandr Yakovlev, Um Século de Violência na Rússia Soviética, Editora Ulisseia, Junho/2004.


O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2367

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

3 de fev. de 2012

A PRIVATARIA PETISTA

Brasil de Fato - [Leonardo Wexell Severo] Banco anuncia que financiará privatização com dinheiro público

Como se não bastasse a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) exigir a presença de operadores estrangeiros nos consórcios que aspiram participar do leilão de "concessão" dos aeroportos internacionais de Brasília (DF), Campinas (SP) e Guarulhos (SP) – os maiores e mais lucrativos do país -, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou dia 19 de janeiro, que financiará até 80% do investimento total das empresas contempladas pelo martelo privatista.

kieloliveira.blogspot.com
Marcado para o dia 6 de fevereiro, o leilão entregará ao capital privado – nacional e transnacional – o controle de três terminais que, juntos, respondem por 30% do fluxo de passageiros e 57% da carga movimentada no país.

"Esta é uma decisão vergonhosa e inadmissível. Se já não bastasse a privatização de um patrimônio estratégico para o nosso desenvolvimento, agora anunciam o uso de um banco de fomento para estimular o capital estrangeiro", condenou Celso Klafke, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil (Fentac). Com a experiência de quem congrega aeroviários (trabalhadores das companhias aéreas e de serviços auxiliares que atuam em terra), aeronautas (pilotos, comissários e mecânicos de voo) e aeroportuários (funcionários da Infraero, que administram os aeroportos), Klafke denuncia a política de "privatizar o filé e estatizar o osso".

Mercado vitaminado

O filé, aliás, é mais do que suculento, pois além do mercado interno vitaminado, temos ainda pela frente a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. De olho nesta maciez, a estadunidense ADC & HAS e a espanhola OHL são algumas das transnacionais que se associaram a empresas brasileiras para candidatar-se ao butim. Vale lembrar que os três terminais em voga realizaram juntos, apenas nos nove primeiros meses do ano passado, cerca de 40 milhões de embarques e desembarques de passageiros.
 
Conforme projeções da Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária), só o Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, fechou 2011 com movimento de 7,6 milhões de passageiros de voos domésticos e internacionais, 28,5% maior que o do ano anterior, quando 5,43 milhões de pessoas passaram pelos terminais de embarque e desembarque. Em sete anos, o movimento no aeroporto de Campinas cresceu 1.025%.

"Por estas e outras razões somos contra o governo abrir mão do controle dos aeroportos brasileiros e, portanto, da Infraero como empresa pública. Esse modelo de concessão e privatização já demonstrou ao longo da década de 1990 que traz imensos prejuízos à população, tanto em termos de tarifa como de qualidade dos serviços prestados", declarou Artur Henrique, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.

Condenando a decisão do BNDES, Artur questionou a irracionalidade do modelo. "Fica a pergunta: se o BNDES pode emprestar 80% para o setor privado, por que não para a Infraero? Eu não sei. Imagino, mas não sei".

O dirigente cutista também alertou que o edital não aponta para a necessidade do controle da torre de pousos e decolagens – do fluxo aéreo – permanecer nas mãos do Estado, o que atenta contra a segurança dos usuários, que ficarão à mercê da lógica e do interesse das empresas. "Mais do que um problema, é o fato de abrir mão da Infraero", sublinhou, já que a empresa é responsável por toda a infraestrutura aeroportuária, desde a terraplanagem para a construção de pistas de pouso até o próprio controle aéreo dos aeroportos.

Campanha midiática

O presidente do Sindicato Nacional dos Aeroportuários, Francisco Lemos, condenou o estímulo do BNDES à desnacionalização como "uma aberração e uma imoralidade financeira que precisam ser barradas pela Justiça". Lemos denunciou a "postura facciosa da grande mídia, que partindo do princípio que uma administração privada é mais eficiente do que a pública, manipula as informações". Mas bem diferente da propaganda privatista, lembrou, a realidade se impõe com "as tampas de bueiros voando nas avenidas do Rio de Janeiro, as panes nos serviços da internet e nos apagões nos serviços de energia elétrica". Em sua campanha desinformativa, frisou, os conglomerados de comunicação "escondem do grande público que 85% dos aeroportos em todo o mundo são públicos, inclusive nos Estados Unidos".

Contra o formato

Lemos destaca que em nenhum momento os trabalhadores – representados pela CUT e pelo SINA – foram contra a parceria com o setor privado. "O que sempre questionamos é o formato da concessão/privatização, ainda mais agora que aponta para uma desnacionalização turbinada com recursos públicos.

Entendemos que as atividades fim – operações, segurança aeroportuária, carga aérea, manutenção especializada e navegação aérea – dos três aeroportos em processo de concessão devem permanecer sob a responsabilidade da Infraero". E sobram argumentos para essa defesa. "Na história da aviação, 98% dos acidentes aéreos ocorreram nos processos de pouso e decolagem e apenas 2% em cruzeiro. Significa dizer que os aeroportos são a parte mais sensível e que a operação dos mesmos não pode ser entregue a quem não tem experiência, através de terceirização e até quarteirização da atividade", acrescentou.

Além dos seus 38 anos de experiência, a Infraero é reconhecida internacionalmente pela sua competência na operação da infraestrutura aeroportuária. Lemos destaca que "a Infraero é a guardiã da soberania nacional". Afinal, esclareceu, "pelos aeroportos – além de passageiros – trafegam cargas de alto valor agregado, infecto-contagiosas, vivas, explosivas, radiativas, numerário da Casa da Moeda, além de condenados pela Justiça do Brasil de outros países".

GRIFO MEU [PK]