Escrito por Maria Clara Arruda e Rafael Oliveira | |
22-Jan-2011 |
"Eu não sei quase nada, mas desconfio de muita coisa"
(Grande sertão: veredas)
O momento é de dor, as imagens são assustadoras e o número de vítimas nos tira o sono, entristece, entretanto, o que mais nos perturba é lembrar que esta não é a primeira e tão pouco será a última catástrofe que assola o Rio de Janeiro.
Mais do que chuva, dos céus, na região serrana do Estado, o que caiu sobre as vítimas desta tragédia foi o fardo histórico de uma sociedade que década a década, geração a geração, continua a optar por um modelo de organização societária baseado na primazia da propriedade privada frente à totalidade dos interesses e imperativos que compõe o social.
O importante é que não se perca de vista que esta tragédia é fundamentalmente resultado das formas de produção e reprodução às quais os homens estão submetidos a partir da lógica do capital. Havendo, portanto, toda uma cadeia causal onde se pode alcançar a base histórica e material, por assim dizer, destes acontecimentos que, por sua vez, não são oriundas do reino da natureza ou da casualidade.
Durante o ano de 2010, os cidadãos do estado mundialmente conhecido por suas belezas naturais, do bem-viver e da determinação inabalável de seu povo, imaginavam já terem testemunhado o que de mais perverso e petrificador poderia ocorrer na sinistra equação "chuvas/moradias em encostas".
Outrossim, o mal parido 2010 trouxe consigo o óbito de cerca de 50 pessoas que celebravam a virada do ano em Angra dos Reis – todas estas vidas consumidas por desmoronamentos de terra, ocorridos em regiões de moradia em encostas – classificadas pelo Estado como "moradias irregulares" e cuja culpabilidade da desgraça repousaria, portanto, nos próprios desgraçados.
Mais ainda, passados poucos meses do infeliz episódio em Angra dos Reis, na região metropolitana do Rio de Janeiro foram registradas cerca de 257 mortes após chuvas intensas no mês de abril. O saldo mais desolador destes acontecimentos, talvez, sejam aqueles alocados na cidade de Niterói – especificamente no Morro do Bumba, onde 47 pessoas morreram e mais de 3 mil ficaram desabrigadas.
Apesar do intenso acompanhamento midiático (ou será espetacularização?), passados nove meses da tragédia, não houve qualquer política habitacional direcionada a estes cidadãos. Segundo o presidente da Associação de Vítimas do Bumba, Francisco Carlos Ferreira de Souza, aproximadamente 800 famílias ainda esperam receber o aluguel social e apenas 93 foram beneficiadas com casas do programa "Minha Casa, Minha Vida". Sem alternativa e à mercê do descaso do Estado muitas pessoas permanecem morando no Bumba.
Um capítulo à parte, vale destacar, é o papel que os meios de comunicação exercem na não politização deste cataclisma social substancialmente baseado numa perspectiva ahistórica do mesmo. Haja vista que a cobertura feita pela grande mídia é pautada em uma abordagem massiva, sensacionalista e superficial. A dramatização dos acontecimentos da realidade fornece a base necessária para a não apreensão histórica destes e consequentemente para a sua alienação. As crônicas em meio a fundos musicais, edificadas e pensadas como o capítulo de uma novela, reduzem o sofrimento alheio e se diluem no emaranhado do senso comum marcado a ferro e fogo pelo próximo reality show a ser televisionado – já que, como se sabe, esmaecida, a memória se torna uma ilha de edição.
Temos ouvido de muitos companheiros (e de nem tão companheiros assim), que "não é hora de fazer política" e sim de "ajudar". Ficamos nos perguntando, como seria possível sanar a dor das centenas de vítimas e evitar que tantas outras padeçam sem a implementação de Políticas Públicas? A não politização das tragédias recentes na região serrana do Rio de Janeiro foi preenchida por um senso de solidariedade que reduz o problema dos desabrigados e mortos da chuva a uma "questão de consciência". Muito embora nossa atitude mental e disposição humanitária façam parte da construção de soluções para os problemas das vítimas, não se pode crer que a superação deste trauma seja sanada sem a presença do Estado, munido daquilo que o justifica e legitima: o sentido do público.
A opção histórica pela eternização do passado, pela conservação do inviável, vitimou a população da região serrana assim como vitima diariamente aqueles que nos grandes centros urbanos fazem suas habitações em encostas dos morros. Uma vez que a grande causa histórica que materializa estas tragédias é a inexistência de uma reforma agrária bem como de um amplo plano de habitação – que por sua vez exigiria tanto a reforma agrária como a reorganização espacial do perímetro urbano.
A especulação imobiliária, assim como o latifúndio, representa até onde vai o compromisso burguês com as bandeiras democráticas – rasgadas pelos imperativos do capital, expressão histórica do modo de produção burguês. A moradia é um direito até onde este direito não macule o direito à propriedade privada – traço distintivo da sociedade burguesa.
Isto posto, não nos causa espanto que, por exemplo, a regulação dos preços de suprimentos e mantimentos considerados como de primeira necessidade por parte deste status quo que ai está não seja realizada pelo poder publico – pois como já se sabe o preço de 20 litros de água chegou ao surreal valor de 40 reais, em meio à catástrofe na região serrana.
Comungando com o que conclama Bertoltd Brecht "Nós vos pedimos com insistência: nunca digam ‘isto é natural’ diante dos acontecimentos de cada dia". Contudo, que o espanto e a não naturalização seja o da indignação daquele que não se resigna, como defendido por Darcy Ribeiro, e não o espanto do incapaz de lembrar.
Maria Clara Arruda é assistente social e mestranda do PPG da FSS/ UERJ.
Rafael Oliveira é cientista social pela UERJ e professor de sociologia do Estado do Rio de Janeiro.
Ambos Pesquisadores Associados do Programa de Estudos de América Latina e Caribe-PROEALC.
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