por Miguel Urbano Rodrigues
entrevistado por Alberto Lopes [*]
entrevistado por Alberto Lopes [*]
resistir.info |
Faz agora meio século. A 22 de Janeiro de 1961, um grupo de antifascistas portugueses e espanhóis infiltrados entre os passageiros assaltou e tomou o paquete "Santa Maria" que navegava no Mar das Antilhas, próximo de Santa Lúcia. O navio, da Companhia Colonial de Navegação, com cerca de um milhar de passageiros e tripulantes a bordo, largara de Tenerife no dia 13, aportara em La Guayra (Venezuela) e em Curaçau e seguia para Miami (Estados Unidos). A Operação Dulcineia foi levada a cabo pelo denominado Directório Revolucionário de Libertação (DRIL) e comandada por Henrique Galvão, com ligações ao general Humberto Delgado, ambos opositores à ditadura salazarista. A aventura terminou a 1 de Fevereiro, quando o navio, rebaptizado "Santa Liberdade", entrou no Recife. As autoridades brasileiras deram refúgio a Galvão e companheiros e o barco foi devolvido a Portugal.
Um dos protagonistas da aventura do "Santa Maria" foi Miguel Urbano Rodrigues, então exilado no Brasil. Era editorialista de O Estado de S. Paulo, estava ligado ao DRIL e foi o primeiro jornalista a subir ao navio, ainda em pleno mar, juntando-se ao comando da operação. Vivendo e trabalhando hoje entre o seu Alentejo (Serpa) e Vila Nova de Gaia, o jornalista e escritor concedeu ao Alentejo Popular uma entrevista sobre o assalto ao "Santa Maria".
– O Miguel Urbano Rodrigues participou, em Janeiro de 1961, na aventura do "Santa Maria". Onde se encontrava a viver e a trabalhar nessa época e em que circunstâncias?
– Antes de responder, digo-lhe que todos os anos, nas vésperas da passagem do aniversário do assalto ao "Santa Maria", sou convidado a falar ou escrever sobre o tema. Recuso sempre, porque nada tenho a acrescentar ao que escrevi em dois capítulos de um livro meu – "O Tempo e o Espaço em que vivi " [1] – e num depoimento ao jornal Público e do que disse há anos num programa de televisão. Não gosto de me repetir e sou avesso a exibicionismos. Abro uma excepção para o Alentejo Popular, pelo apreço que tenho pelo jornal, exemplo de dignidade e coerência ideológica no panorama desolador da imprensa portuguesa.
Sobre o que me perguntou: na época eu vivia exilado, em São Paulo, no Brasil. Era editorialista do diário O Estado de S. Paulo.
– Quando se desencadeia a denominada Operação Dulcineia, tinha já contactos com Henrique Galvão e conhecia previamente os planos de assalto ao "Santa Maria"?
– Eu era membro do Directório Revolucionário de Libertação, mas não tinha conhecimento do plano. Mantinha contacto pelo correio com Henrique Galvão. Conheci-o no aeroporto de São Paulo quando ele passou por ali vindo de Portugal, rumo à Argentina, o seu primeiro pais de exílio, após a evasão.
– Quando toma conhecimento da captura do navio, como é que encontra e entra no "Santa Maria", juntando-se a Galvão e companheiros? Creio que é o primeiro jornalista a entrar no navio capturado...
– No livro referido explico que enviei de Recife um radiograma a Galvão. Ele informou que no dia seguinte estaria navegando entre os paralelos 8 e 9 a uma distância entre 30 e 50 milhas da costa. Aluguei um barco e após uma noite tempestuosa cheguei ao "Santa Maria".
– Como é que decorrem esses dias a bordo do então rebaptizado "Santa Liberdade"?
– A bordo deram-me um uniforme e umas estrelas. Fui informado de que era comandante assessor do DRIL. As relações com os passageiros, mais de 600, eram excelentes. O prestígio da Revolução Cubana contribuía para que vissem em nós piratas românticos. Quando os passageiros me tratavam por "comandante", sentia-me personagem de ficção.
– Segundo li, foi o Miguel a receber a bordo o general Humberto Delgado... Como se recorda desses momentos?
– Em nome do comando fui efectivamente eu quem recebeu o general Humberto Delgado. Gerou-se tensão porque ele chegava com um jornalista do Daily Telegraph que pagara o aluguer do barco e a entrada do repórter a bordo não foi autorizada.
– Quais eram os objectivos iniciais de Henrique Galvão com o assalto ao "Santa Maria"? Esses planos concretizaram-se?
– Existem versões contraditórias sobre o objectivo. A que Jorge Soutomaior apresenta é muito confusa e semeada de inverdades. Segundo José Velo Mosquera, o outro comandante galego, o plano previa chegar de surpresa a Santa Isabel, em Fernão do Pó, tomar ali duas canhoneiras espanholas e rumar a Luanda, na esperança de provocar ali um levantamento revolucionário. Recordo que a minha primeira decepção, ao chegar a bordo, foi o conhecimento desse projecto, quixotesco. Já o haviam abandonado quando a operação deixou de ser secreta, após o desembarque em Santa Lúcia do médico ferido.
– Quem compunha o DRIL, que pessoas eram essas, que motivações tinham?
– Eram 24 os membros do comando do DRIL que tomou o "Santa Maria". A maioria espanhóis, quase todos anarquistas. Alguns diziam ser marxistas, mas, com uma ou outra excepção, espanhóis e portugueses não tinham formação política. Eram antifascistas e a Revolução Cubana empolgava então a juventude na América Latina. Aproximadamente uma dezena de tripulantes aderiu; gente boa, mas também sem formação política.
– Saiu recentemente em Portugal um livro, "Eu Roubei o Santa Maria", de Jorge Soutomaior, aliás José Fernández Vázquez, um activista galego que participou no assalto. O que pensa desta obra?
– A resposta à pergunta será, desculpe, extensa. O editor desse livro, José António Barreiros, telefonou-me há dias. Insistiu pela minha participação num acto comemorativo da tomada do Santa Maria, na Livraria Barata, em Lisboa. Recusei e esclareci que a publicação do livro em questão fora, a meu ver, uma iniciativa lamentável. Quando conheci Jorge Soutomaior não me impressionou mal nas primeiras semanas. Entendi-me muito melhor com ele e José Velo Mosquera do que com Henrique Galvão. Os três formavam a troika do comando do DRIL. Precisamente por isso o livro que escreveu muitos anos depois me chocou. Identifiquei nele a obra de um mitómano. Soutomaior não se limita a deformar grosseiramente a história. Apresenta-se não apenas como o cérebro da chamada Operação Dulcineia, mas como herói de novo tipo, simultaneamente como o ideólogo, o estratego, o homem de acção que tudo decidia… Eu somente entrei no navio dias depois do assalto. Não posso portanto pronunciar-me sobre a versão que apresenta da fase conspirativa e da tomada do barco. Mas, a avaliar pelo que escreve sobre situações em que participei, deve ser também fantasista. Cito quatro exemplos. Quem parlamentou com a esquadra norte-americana e exigiu que tapassem os canhões fui eu – em nome do comando – e não ele. Na tentativa de motim da tripulação nem sequer apareceu durante a cena que descreve. Quem enfrentou a fúria dos amotinados fomos o Rojo e eu que, aliás, voando através da porta de vidro quebrada, sofri ferimentos ligeiros. O episódio rocambolesco que relata, dominando a situação de revólver em punho, é do domínio da ficção. O que afirma sobre a conferência com o almirante americano é também falso. A sua participação na conversa foi muito discreta. Nesse encontro, além dos três comandantes, somente participamos o Rojo e eu. Não foram tomadas quaisquer notas taquigráficas. A acta assinada foi redigida por mim a partir de apontamentos que tomei quando o gravador se avariou logo no início. O cônsul americano em Recife, co-responsável pela redacção, acabou por não tomar notas. A versão que Soutomaior apresenta da sua participação no Brasil em diferentes iniciativas não tem pés nem cabeça. Ele nunca manteve quaisquer contactos com o MPLA. Concordou, em reunião com José Velo e comigo, com a minha ida a África para conversações com os movimentos de libertação das colónias portuguesas, mas não teve a menor participação na elaboração do projecto – concebido pelo Velo e por mim, com desconhecimento do Henrique Galvão. A ideia era transferir os comandos do DRIL para a Guiné-Conakry para colaborarem na luta de libertação da Guiné-Bissau.
Concluindo, o livro "Eu roubei o Santa Maria" é um trabalho de baixo nível, fantasista, recheado de mentiras, que nunca deveria ter sido publicado em Portugal. Julgo útil esclarecer que nem a bordo, nem no Brasil, Soutomaior, na minha presença, nunca hostilizou Galvão. Sei que via nele um colonialista e um reaccionário, mas nem sequer dele discordava com a veemência de Velo.
– Hoje, à distância de meio século, como avalia Henrique Galvão e o general Humberto Delgado, figuras que conheceu e com quem conviveu no exílio brasileiro?
– A imagem do Henrique Galvão revolucionário antifascista distorce a realidade. Foi desde a juventude um admirador de Salazar. Quadro de confiança do regime, foi comissário da Exposição Colonial, director da Emissora Nacional, governador da Huíla. Ambicioso, aspirava a ser governador-geral de Angola. Frustrado por não ter atingido essa meta, passou a conspirar contra a ditadura. Inicialmente impressionou-me. Era um espírito culto, tinha talento, escrevia bem, parecia íntegro e sincero. Mas, ao chegar ao "Santa Maria", a minha decepção foi grande. Percebi logo que Velo e Soutomaior eram os líderes reais do DRIL. Com a aprovação dos espanhóis, sugeri que transmitisse do barco uma proclamação ao povo português. Redigi um texto que lhe submeti: um documento impregnado de romantismo revolucionário infantil. Galvão propunha-se a destruir a ordem social e económica fascista, realizar a reforma agrária e a reforma urbana, liquidar a classe dominante, abrir ao "ultramar as portas da liberdade". A tomada do "Santa Maria" era apresentada como a primeira acção militar das forças sob o seu comando e o DRIL como o núcleo do "futuro exército de libertação de Portugal e Espanha". Eu sabia que ele não aceitaria a palavra independência na referência ao futuro das colónias. Mas a sua vaidade, ânsia de protagonismo e glória foi mais forte do que o seu sentimento conservador. Assinou a mensagem que foi transmitida através de O Estado de S. Paulo e divulgada em dezenas de países. Entretanto, dias depois de chegar ao Brasil, Galvão arrancou a máscara. O início da luta armada em Angola foi determinante para a sua mudança de atitude. Num encontro na União dos Estudantes, em São Paulo, manifestou-se contra a independência das colónias, assumindo posições racistas que chocaram a juventude brasileira. As divergências sobre a questão colonial foram aliás decisivas para o rompimento com Humberto Delgado, ocorrido semanas depois. Nos anos seguintes – morreu em 1970 – assumiu posições ostensivamente reaccionárias, marcadas por um anticomunismo anacrónico.
Pergunta-me qual a minha "avaliação" de Humberto Delgado. Escrevi muito sobre ele e uma resposta breve é pouco esclarecedora. No general, as suas grandes qualidades – inteligência, sentido da honra, tenacidade na luta, lealdade, ausência de espírito rancoroso e uma coragem espartana – coincidiam com defeitos e insuficiências que muito o prejudicaram como dirigente político. Deixava transparecer uma ambição com facetas infantis, era vaidoso, exibicionista, autoritário, conflituoso e não tinha o senso do ridículo. Politicamente, era conservador sem disso tomar consciência. No Brasil, após um começo desastroso, deixou o país rumo a um fim trágico e envolvido pelo afecto e pela simpatia de quase todos os quadros responsáveis da oposição antifascista. É importante assinalar que defendeu sempre o direito dos povos das colónias à autodeterminação e à independência.
– A aventura do "Santa Maria" está de algum modo ligada ao assalto às prisões de Luanda, a 4 de Fevereiro de 1961, início da luta armada em Angola. Pensa que a acção levada a cabo pelo DRIL contribuiu para a denúncia do fascismo português e para chamar a atenção para a situação nas colónias?
– O assalto ao "Santa Maria" não foi o desfecho de um projecto revolucionário. Mas contribuiu decisivamente para chamar a atenção de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo para o fascismo e o colonialismo português. Esse o grande mérito da aventura do DRIL. Dirigentes do MPLA disseram-me em Conakry que a decisão de atacar as prisões de Luanda no 4 de Fevereiro foi inseparável da concentração de jornalistas estrangeiros em Angola no final de Janeiro.
– O Miguel, finda a aventura do "Santa Maria", viaja do Brasil para Conakry e ali conhece Amílcar Cabral e outros dirigentes nacionalistas africanos. Qual era o objectivo dessa viagem e como se passaram ali as coisas?
– A ideia era transferir para África o núcleo de comandos que participara na tomada do "Santa Maria". Em Conakry, após um encontro com Amílcar Cabral, mantive contactos com os embaixadores da Jugoslávia e da União Soviética com vista eventual obtenção de vedetas armadas que nos permitissem interceptar os transportes de tropas portugueses que seguiam para Angola. O plano era expressão daquilo a que Lenine chamou o esquerdismo, doença infantil do comunismo. Recordando a iniciativa, mais do que a minha irresponsabilidade, o que me surpreende hoje é o facto de esses diplomatas me terem recebido e escutado com atenção... O comando do DRIL tinha-se, aliás, desagregado quando semanas depois voltei ao Brasil.
– Essa viagem a África e o encontro com revolucionários africanos foram importantes para si e para o seu posterior percurso como revolucionário?
– O encontro com dirigentes do MPLA e do PAIGC ficou a assinalar um terramoto interior. As semanas de Conakry desencadearam em mim uma reflexão simultaneamente tempestuosa e serena. Ao regressar ao Brasil não era o mesmo jovem que concebera planos loucos a serem executados pelos companheiros do DRIL. No livro de memórias a que me referi evoco a viragem que me levou a contemplar o mundo e o comprometimento revolucionário sob outra perspectiva. Amílcar Cabral foi de todos os dirigentes africanos que então conheci o que mais me impressionou. Senti que me tratava como se fosse um velho camarada, não obstante eu ter esboçado um projecto irresponsável. Foi o início de uma relação de confiança, amistosa, reforçada pelo contacto que mantivemos através da troca de cartas. Numa homenagem à sua memória, em Lisboa, afirmei, parafraseando um discurso seu, que "flores vermelhas, como o sangue dos mártires africanos, e outras, com o verde terno da esperança, cresceram já sobre o seu túmulo". As suas ideias e o seu exemplo adquiriram a consistência do que é imortal. O legado de Amílcar Cabral tornou-se património da humanidade.
Para terminar, permita que evoque um episódio. Pouco depois de regressar de África, procurei o representante do Partido Comunista Português no Brasil, que era então Álvaro Veiga de Oliveira, e disse-lhe o que me pareceu útil sobre a minha ruptura com o esquerdismo romântico. Eu lera em Conakry, no Avante! , o documento em que o PCP anunciava uma nova estratégia que deveria desembocar no levantamento nacional, numa desejada insurreição popular armada. Lembro-me das palavras finais que então pronunciei: "Vou lutar com os comunistas pelo tempo adiante. Podem contar comigo para sempre". Foi há quase 50 anos.
Um dos protagonistas da aventura do "Santa Maria" foi Miguel Urbano Rodrigues, então exilado no Brasil. Era editorialista de O Estado de S. Paulo, estava ligado ao DRIL e foi o primeiro jornalista a subir ao navio, ainda em pleno mar, juntando-se ao comando da operação. Vivendo e trabalhando hoje entre o seu Alentejo (Serpa) e Vila Nova de Gaia, o jornalista e escritor concedeu ao Alentejo Popular uma entrevista sobre o assalto ao "Santa Maria".
– O Miguel Urbano Rodrigues participou, em Janeiro de 1961, na aventura do "Santa Maria". Onde se encontrava a viver e a trabalhar nessa época e em que circunstâncias?
– Antes de responder, digo-lhe que todos os anos, nas vésperas da passagem do aniversário do assalto ao "Santa Maria", sou convidado a falar ou escrever sobre o tema. Recuso sempre, porque nada tenho a acrescentar ao que escrevi em dois capítulos de um livro meu – "O Tempo e o Espaço em que vivi " [1] – e num depoimento ao jornal Público e do que disse há anos num programa de televisão. Não gosto de me repetir e sou avesso a exibicionismos. Abro uma excepção para o Alentejo Popular, pelo apreço que tenho pelo jornal, exemplo de dignidade e coerência ideológica no panorama desolador da imprensa portuguesa.
Sobre o que me perguntou: na época eu vivia exilado, em São Paulo, no Brasil. Era editorialista do diário O Estado de S. Paulo.
– Quando se desencadeia a denominada Operação Dulcineia, tinha já contactos com Henrique Galvão e conhecia previamente os planos de assalto ao "Santa Maria"?
– Eu era membro do Directório Revolucionário de Libertação, mas não tinha conhecimento do plano. Mantinha contacto pelo correio com Henrique Galvão. Conheci-o no aeroporto de São Paulo quando ele passou por ali vindo de Portugal, rumo à Argentina, o seu primeiro pais de exílio, após a evasão.
– Quando toma conhecimento da captura do navio, como é que encontra e entra no "Santa Maria", juntando-se a Galvão e companheiros? Creio que é o primeiro jornalista a entrar no navio capturado...
– No livro referido explico que enviei de Recife um radiograma a Galvão. Ele informou que no dia seguinte estaria navegando entre os paralelos 8 e 9 a uma distância entre 30 e 50 milhas da costa. Aluguei um barco e após uma noite tempestuosa cheguei ao "Santa Maria".
– Como é que decorrem esses dias a bordo do então rebaptizado "Santa Liberdade"?
– A bordo deram-me um uniforme e umas estrelas. Fui informado de que era comandante assessor do DRIL. As relações com os passageiros, mais de 600, eram excelentes. O prestígio da Revolução Cubana contribuía para que vissem em nós piratas românticos. Quando os passageiros me tratavam por "comandante", sentia-me personagem de ficção.
– Segundo li, foi o Miguel a receber a bordo o general Humberto Delgado... Como se recorda desses momentos?
– Em nome do comando fui efectivamente eu quem recebeu o general Humberto Delgado. Gerou-se tensão porque ele chegava com um jornalista do Daily Telegraph que pagara o aluguer do barco e a entrada do repórter a bordo não foi autorizada.
– Quais eram os objectivos iniciais de Henrique Galvão com o assalto ao "Santa Maria"? Esses planos concretizaram-se?
– Existem versões contraditórias sobre o objectivo. A que Jorge Soutomaior apresenta é muito confusa e semeada de inverdades. Segundo José Velo Mosquera, o outro comandante galego, o plano previa chegar de surpresa a Santa Isabel, em Fernão do Pó, tomar ali duas canhoneiras espanholas e rumar a Luanda, na esperança de provocar ali um levantamento revolucionário. Recordo que a minha primeira decepção, ao chegar a bordo, foi o conhecimento desse projecto, quixotesco. Já o haviam abandonado quando a operação deixou de ser secreta, após o desembarque em Santa Lúcia do médico ferido.
– Quem compunha o DRIL, que pessoas eram essas, que motivações tinham?
– Eram 24 os membros do comando do DRIL que tomou o "Santa Maria". A maioria espanhóis, quase todos anarquistas. Alguns diziam ser marxistas, mas, com uma ou outra excepção, espanhóis e portugueses não tinham formação política. Eram antifascistas e a Revolução Cubana empolgava então a juventude na América Latina. Aproximadamente uma dezena de tripulantes aderiu; gente boa, mas também sem formação política.
– Saiu recentemente em Portugal um livro, "Eu Roubei o Santa Maria", de Jorge Soutomaior, aliás José Fernández Vázquez, um activista galego que participou no assalto. O que pensa desta obra?
– A resposta à pergunta será, desculpe, extensa. O editor desse livro, José António Barreiros, telefonou-me há dias. Insistiu pela minha participação num acto comemorativo da tomada do Santa Maria, na Livraria Barata, em Lisboa. Recusei e esclareci que a publicação do livro em questão fora, a meu ver, uma iniciativa lamentável. Quando conheci Jorge Soutomaior não me impressionou mal nas primeiras semanas. Entendi-me muito melhor com ele e José Velo Mosquera do que com Henrique Galvão. Os três formavam a troika do comando do DRIL. Precisamente por isso o livro que escreveu muitos anos depois me chocou. Identifiquei nele a obra de um mitómano. Soutomaior não se limita a deformar grosseiramente a história. Apresenta-se não apenas como o cérebro da chamada Operação Dulcineia, mas como herói de novo tipo, simultaneamente como o ideólogo, o estratego, o homem de acção que tudo decidia… Eu somente entrei no navio dias depois do assalto. Não posso portanto pronunciar-me sobre a versão que apresenta da fase conspirativa e da tomada do barco. Mas, a avaliar pelo que escreve sobre situações em que participei, deve ser também fantasista. Cito quatro exemplos. Quem parlamentou com a esquadra norte-americana e exigiu que tapassem os canhões fui eu – em nome do comando – e não ele. Na tentativa de motim da tripulação nem sequer apareceu durante a cena que descreve. Quem enfrentou a fúria dos amotinados fomos o Rojo e eu que, aliás, voando através da porta de vidro quebrada, sofri ferimentos ligeiros. O episódio rocambolesco que relata, dominando a situação de revólver em punho, é do domínio da ficção. O que afirma sobre a conferência com o almirante americano é também falso. A sua participação na conversa foi muito discreta. Nesse encontro, além dos três comandantes, somente participamos o Rojo e eu. Não foram tomadas quaisquer notas taquigráficas. A acta assinada foi redigida por mim a partir de apontamentos que tomei quando o gravador se avariou logo no início. O cônsul americano em Recife, co-responsável pela redacção, acabou por não tomar notas. A versão que Soutomaior apresenta da sua participação no Brasil em diferentes iniciativas não tem pés nem cabeça. Ele nunca manteve quaisquer contactos com o MPLA. Concordou, em reunião com José Velo e comigo, com a minha ida a África para conversações com os movimentos de libertação das colónias portuguesas, mas não teve a menor participação na elaboração do projecto – concebido pelo Velo e por mim, com desconhecimento do Henrique Galvão. A ideia era transferir os comandos do DRIL para a Guiné-Conakry para colaborarem na luta de libertação da Guiné-Bissau.
Concluindo, o livro "Eu roubei o Santa Maria" é um trabalho de baixo nível, fantasista, recheado de mentiras, que nunca deveria ter sido publicado em Portugal. Julgo útil esclarecer que nem a bordo, nem no Brasil, Soutomaior, na minha presença, nunca hostilizou Galvão. Sei que via nele um colonialista e um reaccionário, mas nem sequer dele discordava com a veemência de Velo.
– Hoje, à distância de meio século, como avalia Henrique Galvão e o general Humberto Delgado, figuras que conheceu e com quem conviveu no exílio brasileiro?
– A imagem do Henrique Galvão revolucionário antifascista distorce a realidade. Foi desde a juventude um admirador de Salazar. Quadro de confiança do regime, foi comissário da Exposição Colonial, director da Emissora Nacional, governador da Huíla. Ambicioso, aspirava a ser governador-geral de Angola. Frustrado por não ter atingido essa meta, passou a conspirar contra a ditadura. Inicialmente impressionou-me. Era um espírito culto, tinha talento, escrevia bem, parecia íntegro e sincero. Mas, ao chegar ao "Santa Maria", a minha decepção foi grande. Percebi logo que Velo e Soutomaior eram os líderes reais do DRIL. Com a aprovação dos espanhóis, sugeri que transmitisse do barco uma proclamação ao povo português. Redigi um texto que lhe submeti: um documento impregnado de romantismo revolucionário infantil. Galvão propunha-se a destruir a ordem social e económica fascista, realizar a reforma agrária e a reforma urbana, liquidar a classe dominante, abrir ao "ultramar as portas da liberdade". A tomada do "Santa Maria" era apresentada como a primeira acção militar das forças sob o seu comando e o DRIL como o núcleo do "futuro exército de libertação de Portugal e Espanha". Eu sabia que ele não aceitaria a palavra independência na referência ao futuro das colónias. Mas a sua vaidade, ânsia de protagonismo e glória foi mais forte do que o seu sentimento conservador. Assinou a mensagem que foi transmitida através de O Estado de S. Paulo e divulgada em dezenas de países. Entretanto, dias depois de chegar ao Brasil, Galvão arrancou a máscara. O início da luta armada em Angola foi determinante para a sua mudança de atitude. Num encontro na União dos Estudantes, em São Paulo, manifestou-se contra a independência das colónias, assumindo posições racistas que chocaram a juventude brasileira. As divergências sobre a questão colonial foram aliás decisivas para o rompimento com Humberto Delgado, ocorrido semanas depois. Nos anos seguintes – morreu em 1970 – assumiu posições ostensivamente reaccionárias, marcadas por um anticomunismo anacrónico.
Pergunta-me qual a minha "avaliação" de Humberto Delgado. Escrevi muito sobre ele e uma resposta breve é pouco esclarecedora. No general, as suas grandes qualidades – inteligência, sentido da honra, tenacidade na luta, lealdade, ausência de espírito rancoroso e uma coragem espartana – coincidiam com defeitos e insuficiências que muito o prejudicaram como dirigente político. Deixava transparecer uma ambição com facetas infantis, era vaidoso, exibicionista, autoritário, conflituoso e não tinha o senso do ridículo. Politicamente, era conservador sem disso tomar consciência. No Brasil, após um começo desastroso, deixou o país rumo a um fim trágico e envolvido pelo afecto e pela simpatia de quase todos os quadros responsáveis da oposição antifascista. É importante assinalar que defendeu sempre o direito dos povos das colónias à autodeterminação e à independência.
– A aventura do "Santa Maria" está de algum modo ligada ao assalto às prisões de Luanda, a 4 de Fevereiro de 1961, início da luta armada em Angola. Pensa que a acção levada a cabo pelo DRIL contribuiu para a denúncia do fascismo português e para chamar a atenção para a situação nas colónias?
– O assalto ao "Santa Maria" não foi o desfecho de um projecto revolucionário. Mas contribuiu decisivamente para chamar a atenção de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo para o fascismo e o colonialismo português. Esse o grande mérito da aventura do DRIL. Dirigentes do MPLA disseram-me em Conakry que a decisão de atacar as prisões de Luanda no 4 de Fevereiro foi inseparável da concentração de jornalistas estrangeiros em Angola no final de Janeiro.
– O Miguel, finda a aventura do "Santa Maria", viaja do Brasil para Conakry e ali conhece Amílcar Cabral e outros dirigentes nacionalistas africanos. Qual era o objectivo dessa viagem e como se passaram ali as coisas?
– A ideia era transferir para África o núcleo de comandos que participara na tomada do "Santa Maria". Em Conakry, após um encontro com Amílcar Cabral, mantive contactos com os embaixadores da Jugoslávia e da União Soviética com vista eventual obtenção de vedetas armadas que nos permitissem interceptar os transportes de tropas portugueses que seguiam para Angola. O plano era expressão daquilo a que Lenine chamou o esquerdismo, doença infantil do comunismo. Recordando a iniciativa, mais do que a minha irresponsabilidade, o que me surpreende hoje é o facto de esses diplomatas me terem recebido e escutado com atenção... O comando do DRIL tinha-se, aliás, desagregado quando semanas depois voltei ao Brasil.
– Essa viagem a África e o encontro com revolucionários africanos foram importantes para si e para o seu posterior percurso como revolucionário?
– O encontro com dirigentes do MPLA e do PAIGC ficou a assinalar um terramoto interior. As semanas de Conakry desencadearam em mim uma reflexão simultaneamente tempestuosa e serena. Ao regressar ao Brasil não era o mesmo jovem que concebera planos loucos a serem executados pelos companheiros do DRIL. No livro de memórias a que me referi evoco a viragem que me levou a contemplar o mundo e o comprometimento revolucionário sob outra perspectiva. Amílcar Cabral foi de todos os dirigentes africanos que então conheci o que mais me impressionou. Senti que me tratava como se fosse um velho camarada, não obstante eu ter esboçado um projecto irresponsável. Foi o início de uma relação de confiança, amistosa, reforçada pelo contacto que mantivemos através da troca de cartas. Numa homenagem à sua memória, em Lisboa, afirmei, parafraseando um discurso seu, que "flores vermelhas, como o sangue dos mártires africanos, e outras, com o verde terno da esperança, cresceram já sobre o seu túmulo". As suas ideias e o seu exemplo adquiriram a consistência do que é imortal. O legado de Amílcar Cabral tornou-se património da humanidade.
Para terminar, permita que evoque um episódio. Pouco depois de regressar de África, procurei o representante do Partido Comunista Português no Brasil, que era então Álvaro Veiga de Oliveira, e disse-lhe o que me pareceu útil sobre a minha ruptura com o esquerdismo romântico. Eu lera em Conakry, no Avante! , o documento em que o PCP anunciava uma nova estratégia que deveria desembocar no levantamento nacional, numa desejada insurreição popular armada. Lembro-me das palavras finais que então pronunciei: "Vou lutar com os comunistas pelo tempo adiante. Podem contar comigo para sempre". Foi há quase 50 anos.
O Tempo e o Espaço em Que Vivi - II Tomo , Campo das Letras, Porto, 2004, 328 pgs., ISBN: 9789726108160
O original encontra-se em http://www.alentejopopular.pt/noticias.asp?id=6036
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