Georg Lukács
“O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado a cada dia, assimilado a cada hora, a partir da práxis.”
A relação com Marx é a verdadeira pedra de toque para todo intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a ela. A seriedade, o escrúpulo e a profundidade com que ele se dedica a esta problemática nos indica em que medida ele quer, consciente ou inconscientemente, esquivar-se de um claro posicionamento com relação às lutas da história atual. Os esboços biográficos que tratam da relação com Marx, da luta espiritual com o marxismo, dão-nos, por vezes, um quadro que, enquanto contribuição à história da luta social dos intelectuais no período imperialista, possui um interesse geral, mesmo quando, como no meu caso, a biografia em si não tenha nenhuma pretensão de interessar ao público.
Foi ao terminar os meus estudos secundários que se deu o meu primeiro encontro com Marx (com o Manifesto Comunista). A impressão foi extraordinária e, quando estudante universitário, li então algumas obras de Marx e Engels (como, por exemplo, O 18 Brumário, A Origem da Família) e, em particular, estudei a fundo o primeiro volume de O Capital. Esse estudo me convenceu rapidamente da exatidão de alguns pontos centrais do marxismo. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a teoria da mais-valia, com a concepção da história como história da luta de classes e com a articulação da sociedade em classes. Naquele momento, como é óbvio no caso de um intelectual burguês, essa influência se limitou à economia e, sobretudo, à “sociologia”. Considerava a filosofia materialista – não distinguia o materialismo dialético do não dialético – completamente superada, enquanto teoria do conhecimento. A tese neokantiana[2] da “imanência da consciência” ajustava-se perfeitamente à minha posição de classe na época; não a submetia a qualquer exame crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de partida de toda e qualquer colocação do problema gnosiológico.
Na verdade, mantinha uma constante suspeita frente ao extremado idealismo subjetivo (tanto o da escola neokantiana de Marburgo quanto o da teoria de Mach), uma vez que não conseguia compreender como era que o problema da realidade podia ser definido, considerando-a simplesmente uma categoria imanente da consciência. Mas, embora isso não me tenha conduzido a conclusões materialistas, acabou levando-me muito mais a uma aproximação com aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema de forma irracionalista e relativista e, até muitas vezes, mística (Windelband-Rickert, Simmel, Dilthey). A influência de Simmel[3], de quem fui discípulo direto, deu-me ainda a possibilidade de “inserir” numa tal concepção de mundo tudo o que havia assimilado de Marx nesse período. A filosofia do dinheiro de Simmel e os escritos sobre o protestantismo de Max Weber foram os meus modelos para uma “sociologia da literatura”, na qual os elementos derivados de Marx estavam mais uma vez presentes, mas tão diluídos e empalidecidos que eram quase irreconhecíveis.
Seguindo o exemplo de Simmel, eu, de um lado, separava o quanto possível a “sociologia” do fundamento econômico, concebido de modo bastante abstrato, e, de outro lado, via na análise “sociológica” apenas o estágio inicial da verdadeira e real pesquisa científica no campo da estética (História da Evolução do Drama Moderno, 1909; Metodologia da História Literária, 1910, ambas em húngaro). Os meus ensaios publicados entre 1907 e 1911 oscilavam entre este método e um subjetivismo místico.
Era natural, com tal desenvolvimento da minha concepção de mundo, que as impressões que tivera da leitura de Marx, na minha juventude, fossem empalidecendo cada vez mais e acabassem por desempenhar um papel cada vez menor na minha atividade científica. Considerava, não menos do que anteriormente, Marx o economista e o “sociólogo” mais competente; mas a economia e a “sociologia” ocupavam neste período um papel insignificante nesta atividade. Ao leitor não interessam as singularidades e as diferentes fases deste desenvolvimento, através do qual este idealismo subjetivo me conduziu a uma crise filosófica. Mas esta crise – sem que de imediato eu soubesse – foi determinada objetivamente pela manifestação mais intensa das contradições imperialistas e foi precipitada com a eclosão da Guerra Mundial[4]. Decerto, esta crise se manifestou, de início, apenas na minha passagem do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo (Teoria do Romance, escrita entre 1914-15) e, naturalmente, Hegel adquiriu para mim uma importância cada vez maior, em particular a Fenomenologia do Espírito. O meu segundo estudo intenso de Marx começa com a minha compreensão, cada vez maior, do caráter imperialista da Guerra, com o aprofundamento dos meus estudos de Hegel, no decorrer dos quais me aproximei também de Feuerbach, embora, naquele momento, me interessasse apenas pelo aspecto antropológico. Os escritos filosóficos da juventude de Marx passaram a ser o ponto central de meu interesse, embora ainda estudasse com paixão a grande Introdução à Crítica da Economia Política. Desta vez, porém, não se tratava mais de um Marx visto da lente de Simmel, mas através da perspectiva hegeliana. Marx deixava de ser o “eminente especialista”, o “economista e sociólogo”; já começava a delinear-se para mim o grande pensador, o grande dialeta. No entanto, naquela época, ainda não compreendia o significado do materialismo para a concretização, unificação e colocação coerente das questões dialéticas. O máximo que cheguei a postular foi uma prioridade – hegeliana – do conteúdo sobre a forma e procurei, sobre base essencialmente hegeliana, sintetizar Hegel e Marx numa “filosofia da história”. Essa tentativa adquiriu uma tonalidade particular porque no meu país, a Hungria, a ideologia “socialista de esquerda” mais influente era o sindicalismo de Ervin Szabó[5]. Os seus escritos sindicalistas, apesar de terem influenciado os meus “ensaios de filosofia da história” com vários elementos positivos (como, por exemplo, o fato de ter-me posto em contato com a Crítica do Programa de Gotha), deram um caráter acentuado de subjetivismo abstrato e, portanto, idealístico-ético aos meus escritos. Isolado, enquanto intelectual universitário, do movimento operário ilegal, não pude tomar conhecimento, durante o conflito, nem dos escritos dos espartaquistas, nem dos ensaios de Lênin sobre a Guerra. Li, porém, com efeitos profundos e duradouros, os escritos, anteriores à Guerra, de Rosa de Luxemburgo. Li O Estado e a Revolução de Lênin somente no período revolucionário de 1918-19.
As revoluções de [19]17 e [19]18 surpreenderam-me no bojo dessa efervescência ideológica. Em dezembro de 1918, depois de breve hesitação, ingressei no Partido Comunista Húngaro e, desde então, permaneci nas fileiras do movimento operário revolucionário. O trabalho prático logo me obrigou a dedicar-me aos escritos econômicos de Marx, a um estudo mais profundo da história, da história econômica, da história do movimento operário etc., empenhando-me, assim, numa contínua revisão dos fundamentos filosóficos. Todavia, essa luta para dominar a dialética marxista prolongou-se por muito tempo. As experiências da revolução húngara[6] mostraram-me claramente a fragilidade de todas as teorias sindicalistas (a função do partido na revolução), mas persistiu em mim, ao longo dos anos, um subjetivismo ultraesquerdista (por exemplo, minha posição nos debates em 1920[7], sobre a ação parlamentar e a minha atitude em relação ao movimento de março de 1921)[8]. Tudo isso me impedia de compreender, de modo correto e verdadeiro, o aspecto materialista da dialética no seu significado filosófico mais abrangente. O meu livro História e Consciência de Classe (1923) mostra muito claramente essa transição. Apesar da tentativa, já consciente, de superar e “eliminar” Hegel através de Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos nesta obra de maneira idealista (dialética da natureza, teoria do reflexo etc.). A teoria de Rosa de Luxemburgo sobre a acumulação do capital, à qual ainda me atinha, misturava-se de modo não orgânico com um ativismo subjetivista de ultraesquerda.
Somente a íntima adesão ao movimento operário, devida a uma prática de muitos anos, e a possibilidade que tive de estudar as obras de Lênin e pouco a pouco compreender seu significado fundamental propiciaram o terceiro período de meu interesse por Marx. Somente agora, depois de quase uma década de trabalho prático e depois de mais de um decênio de esforço intelectual para compreender Marx, é que o caráter total e unitário da dialética materialista se tornou claro em termo concreto para mim. Mas justamente essa clareza trouxe também consigo o reconhecimento de que o verdadeiro estudo do marxismo só está começando agora e não pode mais parar. Porque, como disse Lênin, com toda razão, “o fenômeno é mais rico do que a lei... e por isso a lei, qualquer que seja, é estreita, incompleta, aproximativa”. Isto quer dizer: quem tiver a ilusão de ter compreendido, de uma vez por todas, os fenômenos da natureza e da sociedade, baseado num conhecimento, por mais vasto e profundo que seja, do materialismo dialético, terá necessariamente se deslocado da dialética viva para a rigidez mecânica, do materialismo abrangente para a unilateralidade do idealismo. O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado a cada dia, assimilado a cada hora, a partir da práxis. Por outro lado, a doutrina de Marx, em sua inatacável unidade e totalidade, constitui a arma para a condução da prática, para o domínio dos fenômenos e de suas leis. Se dessa totalidade for destacado (ou apenas subestimado) um só elemento constitutivo, teremos de novo a rigidez e a unilateralidade. Basta que se perca a relação dos momentos uns com os outros, e lá se vai o chão da dialética marxista sobre o qual apoiamos os pés. “Pois qualquer verdade” – diz Lênin – “se a exagerarmos, se ultrapassamos os limites de sua validade, pode tornar-se um absurdo; aliás, é inevitável que, em tais circunstâncias, ela se torne um absurdo.”
Passaram-se mais de 30 anos desde o dia em que, jovem ainda, li pela primeira vez o Manifesto Comunista. O progressivo aprofundamento – ainda que contraditório e não linear – das obras de Marx tornou-se a história do meu desenvolvimento intelectual e, portanto, tornou-se também a história de toda a minha vida, na medida em que ela possa ter algum significado para a sociedade. Parece-me que, no período posterior a Marx, a tomada de posição em relação ao seu pensamento deve constituir o problema central de todo pensador que leve a sério a si próprio, e que o modo e o grau com que ele se apropria do método e dos resultados de Marx determinam o seu lugar no desenvolvimento da humanidade. Esse desenvolvimento está determinado pela situação de classe, se bem que essa determinação não é rígida, mas dialética. A nossa posição na luta de classes determina amplamente o modo e o grau que assumimos o marxismo, mas, por outro lado, todo novo progresso nessa adoção nos faz aderir cada vez mais à vida e à práxis do proletariado e redunda beneficamente no aprofundamento da nossa relação com a doutrina marxista (1933).
[1] “Mein Weg zu Marx” foi publicado na revista moscovita Internationale Literatur, n° 2, em 1933, tendo sido reproduzido em G. Lukács zum Siebzigsten Gebeertstag (Berlim, Aufban, 1955). Com tradução para o italiano por Ugo Gemmelli, foi publicado em Nuovi Argomenti, n° 33, 1958. Tradução para o português, a partir do texto integral traduzido por Ugo Gemmelli in Marxismo e politica culturale (Torino, Einaudi Editore, 1977), de Luiza L. S. Sakamoto, Marilene G. Pottes e M. Dolores Prades. Revisão técnica de Thereza Calvet de Magalhães. Notas da Edição Brasileira (publicada originalmente na Revista Nova Escrita/Ensaio especial – Marx Hoje, ano V, n° 11/12, 1983).
[2] Naquele período, o neokantismo se constituía na tendência filosófica dominante no mundo de língua alemã; duas escolas principais compunham esta tendência: a escola de Marburgo, da qual faziam parte Cohen e Natorp, e a escola de Heidelberg, cujos principais exponentes eram Windelband e Rickert.
[3] Lukács foi aluno de Simmel em Berlim, durante os anos 1909-10, assim como teve aulas em Heidelberg, no ano de 1913, com Windelband e Rickert, quando travou conhecimento com Emil Lask e Max Weber.
[4] Lukács refere-se aqui ao estado de desespero produzido pela I Guerra Mundial, a qual repudiou de maneira veemente e global; a perspectiva de uma vitória da Alemanha tinha o efeito de um pesadelo. Vivia em permanente tensão diante da situação mundial. Só o ano de 1917 traria a solução de problemas que até então considerava insolúveis, conforme ele mesmo explicita no Prefácio de 1962 a Teoria do Romance.
[5] O contato de Lukács com Erwin Szábo data de 1902. Naquele ano Lukács se inscreveu na organização Estudantes Socialistas Revolucionários de Budapeste, organizada por Szábo, influente anarcossindicalista húngaro.
[6] A República Soviética da Hungria, proclamada em março de 1919 e liderada por Béla Kun, durou apenas alguns meses, até agosto do mesmo ano. Lukács participou ativamente deste processo, tornando-se vice-comissário do povo para a área de educação, e depois da demissão em junho do social-democrata Zsigmond Kunfi, ocupa o seu lugar à frente do ministério.
[7] Lukács refere-se, aqui, por certo, em especial, ao artigo “Zur Frage des Parlamentarismus” (“Sobre a questão do parlamentarismo”), de 1920, publicado pela primeira vez na revista Kommunismus, em Viena, de cujo Conselho Editorial era membro. Neste texto, Lukács defendia a ruptura total com todas as instituições burguesas, inviabilizando, assim, qualquer ação política legal. Lênin criticou violentamente este artigo.
[8] Trata-se da insurreição da direção esquerdista, em março de 1921, do Partido Comunista Alemão, que redundou numa sangrenta e violenta derrota do movimento operário.
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