22 de nov. de 2012

Democracia e fetiche: de homens e fantasmas


Por Mauro Iasi.

“A essência da democracia só pode ser compreendida tendo-se em mente a antítese ideologia e realidade”
Hans Kelsen

Uma relação entre seres humanos assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Foi Marx quem disse isso em sua brilhante síntese sobre o efeito que se apresenta quando os produtos do trabalho humano assumem a forma mercadoria.

Cada produtor privado de diferentes mercadorias se relaciona com outros muitos, não diretamente, mas por meio dos produtos de seu trabalho. Na relação de troca entre duas mercadorias, mas precisamente, na proporção em que se torna possível a troca, é que se revela o valor. Para isso, toda particularidade concreta das mercadorias e do trabalho que as gerou tem que desaparecer, para que possam se equivaler como coisas de valor têm que se expressar como trabalho abstrato. Não se pode comparar o trabalho do pedreiro que faz casas com o do agricultor que planta alimentos, mas como trabalho humano abstrato, ambos são dispêndio de força de trabalho, cérebro, nervos e músculos, que em certa quantidade se igualam.

Assim o valor de troca, nos diz Marx, é apenas a expressão, isto é, a forma como se expressa um conteúdo que é o valor: uma quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessário. Forma e conteúdo, aparência e essência, não são vistos pelo autor como uma dualidade mecânica na qual a forma é falsidade e a verdade está na substância. A forma é a maneira necessária, uma vez desvendadas suas determinações, de expressão de certa substância. No caso o valor se expressa na relação do valor de troca e nisso não há nenhuma casualidade ou fortuidade, como pode aparecer à primeira vista.

O mesmo se observa quando falamos de outras esferas da ação humana. Quando tratamos da democracia costuma-se, como vemos na epígrafe de Kelsen que abre o presente texto, colocar de um lado a democracia como valor ou princípio e de outra sua forma de realização. Recuamos, assim, aos termos da política platônica segundo os quais as únicas formas virtuosas de governo são aquelas imaginadas pelos filósofos e degeneradas todas aquelas que os seres humanos imperfeitos ousam concretizar.

O valor democrático é pleno de virtudes, mas infelizmente suas formas concretas com as quais nos deparamos no real são cheias de imperfeições o que leva à famosa assertiva: a democracia é o pior de todas as formas de governo excetuando todas as outras. Ora, então estaríamos diante de uma contradição entre a democracia como forma de expressão concreta e o valor que constitui em sua substância?

Voltemos à Marx e seu conceito de fetiche. Logo depois da síntese apresentada na qual o autor define que o fetiche do mundo das mercadorias pode ser definido como uma relação entre seres humanos que assume a forma espectral de uma relação entre coisas nos é apresentada uma frase inquietante. Como os trabalhos privados atuam como partes do trabalho social, é somente através das trocas das mercadorias que acabam se estabelecendo as relações entre os produtores privados. Disso Marx conclui que as relações se apresentam “de acordo com que realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos” (Marx, O Capital, livro I, volume I, capítulo 1, item 4).

Vejam que a forma fantasmagórica apresenta uma inversão, mas não é o cérebro dos homens que produzem esta inversão. Em outro trabalho (Marx, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Boitempo: 2005, p. 145), quando fala do Estado e a religião afirma que estes expressam uma consciência invertida do mundo por que são a consciência de um mundo invertido. Desta maneira, quando vemos na forma fetichizada das mercadorias expressa uma inversão, apenas nos deparamos com um elemento do real invertido.

No caso das mercadorias o fato é que os seres humanos ao produzirem as coisas que satisfarão suas necessidades na forma de mercadorias, necessariamente acabarão por se relacionar com os outros por meio destas coisas, daí o fetichismo, nos termos de Marx, ser “grudado” aos produtos do trabalho e inseparável da forma mercadoria.

E no caso da democracia? Primeiro precisamos lembrar que o fetichismo das mercadorias e seu complemento inevitável, a reificação ou coisificação dos seres humanos, não se prende apenas à esfera restritamente entendida como econômica. É destino dos seres humanos submetidos à forma mercadoria verem os produtos de sua mão distanciarem-se e voltar contra eles como uma potência estranha que os controla ao invés de controlarem. Sabemos que os seres humanos ao produzirem as condições de sua existência produzem, de igual maneira, as relações em que vivem. Também produzem as relações dentro quais edificam as formas sociais de tomada de decisão que podem ou não evoluir para formas de poder, as normatizações que podem ou não evoluir para estruturas jurídicas e assumir a forma do Direito e mesmo as ideias, valores por meio dos quais buscam compreender a si mesmos, os outros e o mundo e que assumem a forma de concepções de mundo, religiões, filosofias, ciência, manifestações artísticas constituindo certa consciência social.

Acontece que aquilo que se manifesta na produção direta da vida através do trabalho, pode também se expressar nas objetivações secundárias de maneira que os seres humanos produzem relações sociais que se voltam contra eles como uma força estranha e acaba por dominá-los. O direito se aliena na lei positivada. Nossos medos e angústias em deuses furiosos os benevolentes. Nossa subjetividade se materializa em formas estéticas que muitas vezes navegam para longe das almas de onde partiram.

Para nós não é um espanto o fato de que as relações políticas, isto é, a própria associação dos seres sociais em sociedade e as formas de governo que daí deriva, se estranhar em algo acima e contra os seres humanos como na espectral visão hobbesiana de Estado e daí derivarem uma miríade de contradições e problemas que passam a ser os grades temas da teoria Política Moderna: a relação entre a vontade particular dos indivíduos e o interesse geral, a fonte da soberania e da autoridade, a relação entre o Estado e a Sociedade Civil Burguesa.

Assim como os produtores privados de distintas mercadorias, executores de trabalhos concretos distintos, só encontram sua equivalência na abstração do valor, no fenômeno político, próprio da ordem das mercadorias, acaba por se produzir uma contradição entre o burguês como membro da sociedade civil e o cidadão como membro do Estado. Na sociedade civil burguesa, é um indivíduo, livre, com potencialidades e talentos singulares que o levarão a uma posição de sucesso ou fracasso na concorrência com outros indivíduos, portanto, profunda e visceralmente desiguais. Só no bojo das relações políticas e jurídicas, diante do Estado, é que se tornam iguais na condição de cidadãos e, nesta, necessariamente abstratos, isto é, uma igualdade jurídica de seres em si mesmos diferentes.

As contradições da democracia não derivam, portanto, da contradição entre valor e forma. A forma revela as contradições presentes no valor pelo simples fato de que ambas, forma e substância, são expressões da materialidade das relações em que são produzidas. O paradoxo insuperável consiste no fato de que o desafio da democracia como forma de governo é encontrar a forma política adequada a seres formalmente iguais em direitos que são de fato desiguais diante da propriedade e, consequentemente, das riquezas e posição social que daí deriva.

Hegel procura resolver logicamente este paradoxo afirmando que o fim do Estado é o interesse universal como tal, mas que a substância deste interesse universal deve ser a conservação dos interesses particulares, ou se preferirem, como síntese de múltiplas particularidades. Kelsen é forçado a concluir que um olhar realista que penetre “a nuvem das aparências ideológicas” demonstra que os Estados que realmente existem acabam por defender, antes de mais nada, o “interesse do grupo dominante” (Kelsen, H. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 40). Bom, Marx já sabia disso e daí conclui que todo Estado é sempre o Estado de uma classe social, não de qualquer uma, mas da classe economicamente dominante em cada período.

O neo-positivista Kelsen, em uma direção distinta, acredito que representando um elemento importante da consciência de nosso tempo, se vê obrigado a concluir que:

“Dada a oposição de interesses, que é da experiência e que aqui é inevitável, a vontade geral, se não deve exprimir exclusivamente o interesse de um único grupo, só pode ser a resultante, a conciliação entre opostos. A formação do povo em partidos políticos na realidade é uma organização necessária a fim de que esses acordos possam ser realizados, a fim de que a vontade geral possa mover-se ao longo da linha média” (idem, p. 41).

Vejam, dada que a oposição (diríamos nós – o antagonismo) de interesses é inevitável e não é desejável que o Estado defenda o interesse apenas de um grupo (normalmente o da classe dominante), então o interesse geral deve ser a expressão da conciliação dos interesses, movendo-se na “linha média”. Ora, dado o fato de que o Estado exprime o interesse de um dos grupos (não por acaso o dominante), não passa pela cabeça do eminente jurista nascido em Praga e falecido em Harvard (em muitos sentidos físicos e simbólicos) que a solução seja criar as condições para que o Estado expresse os interesses do outro grupo (os explorados), mas a conciliação de interesses de explorados e exploradores.

É assim que as coisas são e assim se expressam como realmente são. No entanto, dada esta sociabilidade, nossas relações políticas só podem ser de seres abstratos, pois só no âmbito da abstração dos interesses gerais é que os seres reais que compõem as classes podem encontrar a linha média. A relação real entre as classes é de luta, mas mediadas pelos partidos que supostamente representam esta classe, pode-se encontrar a linha média dos interesses no quadro na vontade geral, evidentemente pressupondo a exclusão de todo interesse e manifestação concreta, substituindo-as pela abstração do compromisso, do pacto, do consenso.

Na política como na economia são os próprios seres humanos que produzem as relações que os aprisionam no estranhamento e na alienação. Livremente escolhem, a cada quatro anos, entre os membros da classe dominante aqueles que os representaram e massacrarão no parlamento, já disse Marx e reforçou Lênin. O aperfeiçoamento da democracia fetiche se dá na medida em que agora os trabalhadores podem livremente, a cada quatro anos, escolher até mesmo entre os membros de sua classe aqueles que o representaram e massacrarão no exercício do poder político do Estado burguês.

Contra o fetiche e a reificação, lembremos Silvio Rodriguez: “onde há homens, não há fantasmas”!

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário