Por Aloysio Castelo de Carvalho
Em um depoimento concedido a historiadores do CPDOC sobre sua trajetória no regime autoritário de 1964, o ex-presidente Ernesto Geisel admitiu a tortura como um meio necessário para a obtenção de confissões. O general reconheceu que “há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior”. A revelação de Geisel, o quarto general a exercer o poder após a deposição do presidente João Goulart, coloca em questão a imagem do dirigente militar comprometido com a legalidade e com a condenação dos excessos de violência praticados pelo aparato repressivo, sob controle da linha dura. Desse modo, abrem-se novas vias de pesquisas sobre um dos períodos mais sombrios da história republicana brasileira no século 20. Ressurgem as polêmicas sobre os papéis desempenhados pelos grupos militares na organização do regime.
Se não devemos diluir completamente as fronteiras entre os grupos que tinham influência na direção do Estado, é preciso repensar suas relações levando em conta que a longa duração do regime exige a ênfase na complementaridade dos papéis por eles desempenhados.Poderíamos supor, por exemplo, que no governo Geisel, as prisões, torturas e mortes de dirigentes do PCB ocorridas entre 1973 e 1976, partido ao qual os dirigentes militares atribuíam influência na vitória do MDB nas eleições em novembro de 1974, fizeram parte de uma longa e planejada ação, contando com anuência da cúpula do poder. Nessa linha de interpretação se coloca também a ação repressiva que culminou no Massacre da Lapa, com a morte de dirigentes do PCdoB em dezembro de 1976, quando o II Exército estava sob o comando do general Dilermando Gomes Monteiro, considerado moderado e íntimo colaborador de Geisel. O mesmo raciocínio não poderia ser aplicado às mortes do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, e do metalúrgico sindicalista Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, compreendidas mais como provocações do aparato repressivo, ficando a responsabilidade restrita aos oficiais do II Exército, sob o comando do general Ednardo d’Ávila.
Denúncias de tortura
Outro famoso caso de provocação teria sido a explosão da bomba no Riocentro em 30 de abril de 1981, durante show comemorativo do Dia do Trabalho, quando morreu no local um sargento e ficou ferido um capitão, dois militares do Exército pertencentes ao DOI-Codi. Vale lembrar que, exceto os dois primeiros episódios, os outros resultaram em crises na cúpula militar, com a demissão do comandante do II Exército Ednardo d’Ávila pelo presidente Geisel após a morte do metalúrgico. No caso do Riocentro, ocorrido no governo Figueiredo, o general Golbery renunciou ao cargo de chefe do Gabinete Civil da presidência por discordar dos rumos tomados pelo inquérito realizado pelo Exército, que encobriu os responsáveis pela ação terrorista.
A violência praticada pelos órgãos repressivos do Estado pós-64 sempre foi cultivada pelos dirigentes militares, situando-se no centro da estratégia para consolidar o autoritarismo, cujo propósito era desmobilizar e despolitizar a sociedade. Todavia, a violência atingiu formas extremas de ilegalidade, chegando a adquirir traços que a aproximassem do terrorismo de Estado, como ocorreu entre 1969 e 1973. O Estado expandiu o perfil policial no controle da sociedade e os indivíduos perderam por completo as garantias legais, ficando desprotegidos ante as ameaças dos aparatos de segurança, que não conheciam limites para as suas operações. Segundo o Comitê Internacional de Juristas, havia na época pelo menos 12.000 presos políticos no Brasil [Maria Helena Moreira Alves,Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Vozes, Petrópolis, 1989, p.166]. O Grupo Tortura Nunca Mais registra em seu site que o número de militantes políticos mortos e desaparecidos durante o regime militar foi de 180. Entre 1964 e 1968 foi de 27; entre 1969 e 1973, de 139; e entre 1975 e 1983, de 14. Se as informações procedem, isto significa que no período após o AI-5 até o fim do governo Médici ocorreram em torno de 75% das mortes e desaparecimentos dos opositores do regime. Estudo inédito do governo federal propôs este ano, 2012, quase triplicar a lista oficial de mortos e desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar. Seriam camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, padres, advogados e ambientalistas mortos nos grotões do país entre 1961 e 1988. A maioria morreu na região amazônica durante os 21 anos de regime militar (1964-1985).
As denúncias de torturas em presos políticos praticadas pelos aparatos de segurança existiam desde a instituição do regime militar em 1964. Mas se intensificaram após 1968, com o AI-5. Durante todo o período do governo Médici, relatos sobre pessoas atingidas pela repressão circularam entre famílias, estudantes, órgãos da igreja e jurídicos, entidades jornalísticas e, sobretudo, nas redações dos jornais brasileiros.
“Mentiras” divulgadas no exterior
O historiador e brasilianista James Green [entrevista ao caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, 6 de junho de 2004] afirma que o New York Times, o Washington Poste outros importantes jornais dos EUA promoveram uma pequena campanha inicial após o AI-5, denunciando as medidas repressivas. Embora os jornais americanos criticassem as medidas negativas do AI 5, não houve menção de tortura. As primeiras referências à tortura, segundo o historiador, ocorreram logo após o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, no Rio de Janeiro. O fato de os presos políticos, que foram trocados pelo embaixador, irem para o México possibilitou que eles denunciassem a tortura. Os jornais americanos repercutiram as denúncias, repetindo e publicando as declarações dos exilados brasileiros e o New York Times deu à reportagem o título de “Supostamente torturados”. Esta foi a primeira menção de que os presos políticos foram torturados e isso ocorreu, segundo o historiador, em setembro de 1969.
As denúncias de torturas em presos políticos divulgadas pela imprensa internacional repercutiram no Brasil e o tema se tornou de domínio público nos meses de novembro e dezembro de 1969, quando os jornais pediram que o governo apurasse os fatos e tomasse as providências necessárias se eles fossem verdadeiros. Nesse ambiente, poucos dias após a morte de Marighella, O Globo publicou na primeira página, em 22 de novembro de 1969, o editorial intitulado “Torturas?”, no qual investiu contra a imprensa internacional, afirmando que jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses e italianos estavam publicando frequentemente matérias fantasiosas a respeito de torturas no Brasil.
O jornal lembrou que denúncias desse tipo já tinham ocorrido recentemente, como no governo Castelo Branco, quando foram divulgadas informações a respeito de maus tratos sofridos por presos políticos em Pernambuco. O general Ernesto Geisel é citado como o responsável por uma rigorosa sindicância naquele estado, apurando que nenhuma violência ocorrera. Referindo-se ao sequestro do embaixador Elbrick, que possibilitou a libertação de vários militantes políticos, o editorial argumentou que alguns desses presos dados como torturados e incapacitados estavam em Cuba e mostravam excelentes condições físicas. O Globo pediu que o governo apurasse as denúncias para destruir as “mentiras” divulgadas no exterior contra o regime brasileiro.
A unidade do poder dominante
Como explicar o editorial de O Globo? Àquela altura dos acontecimentos, várias fontes já tinham possibilitado a O Globo e a outros importantes jornais do país terem pleno conhecimento de que torturas em presos políticos ocorriam no Brasil, como continuaram sabendo durante todo o governo Médici, pois a violência do aparato repressivo se intensificou até os grupos de esquerda armada serem dizimados.
Vale observar que O Globo não legitimou o debate público sobre a tortura durante o governo Médici, diferentemente de Geisel que, após deixar a presidência da República, prestou um depoimento aos historiadores do CPDOC no qual a admitiu como um meio necessário para a obtenção de confissões. O jornal fechou o discurso em torno da não existência de torturas no Brasil. Disse claramente que a imprensa internacional estava promovendo uma campanha de difamação do Brasil e que as denúncias de existência de torturas eram mentirosas. Por fim, o editorial foi concluído com a defesa do regime militar, pois este, segundo O Globo, “salvou o país dos mais terríveis torturadores que a história conheceu”, os quais, no texto, ganham o significado de comunistas e totalitários de esquerda.
Somente a adesão total à ditadura pode explicar a posição de O Globo de esconder a violência praticada pelos órgãos de segurança no Brasil, sobretudo durante o governo Médici. Se a tortura não podia ser justificada, ela podia ser negada de modo a não permitir que nenhum questionamento pusesse em risco a unidade obtida após o AI-5 entre as forças sociais e políticas que compunham o então sistema de poder dominante.
Como acreditar?
Não foi outro o motivo do editorial de O Globo intitulado “Unam-se todos”, publicado na primeira página, em 5 de setembro de 1969, um dia após o sequestro do embaixador americano no Rio de Janeiro, quando o I Exército buscava localizar o cativeiro do diplomata e o governo se preparava para responder às exigências feitas pela ALN e pela Dissidência Comunista da Guanabara [(DI, posteriormente Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)] de libertação de 15 presos políticos e divulgação através dos meios de comunicação de um manifesto político dessas organizações.
O Globo afirmou que o Brasil estaria sendo governado pelos correligionários dos sequestradores do embaixador Elbrick se não tivesse havido o 31 de março. Alertou que o Brasil desunido cairia na armadilha que o terrorismo armara. O editorial argumentou que a derrota dos terríveis inimigos terroristas só seria possível com a completa união entre povo e governo e defendeu que a palavra de ordem deveria ser a união entre civis e militares, sem dissidências, sem desentendimentos.
Dessa forma, vivemos um dos momentos mais sombrios da história republicana. O Estado autoritário foi defendido por diversos setores da sociedade, em particular os representantes da imprensa, que internalizaram plenamente as diretrizes de um regime cuja principal base de apoio, sobretudo durante o governo Médici, se encontrava no aparato repressivo comandado pelas facções de extrema-direita, comprometidas com métodos fascistas de intimidação política.
Os representantes da imprensa brasileira que legitimaram o regime e acobertaram as violências praticadas no interior das instituições militares traíram a confiança do público. Como acreditar hoje num jornal que defendeu num passado recente um regime que praticava torturas?
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[Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Faculdade de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ]
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