Há quem decrete o fim da classe operária, com a exacerbada corrida tecnológica, que vem substituindo os braços humanos na produção industrial. A expressão pode até se desusar, e de certa forma já está sendo abandonada. Mas o problema é de outra natureza. O mundo não se divide entre os trabalhadores manuais e os outros, mas sim entre os assalariados e os donos do capital. Isso em uma visão ligeira do problema, porque todo trabalho humano é, ao mesmo tempo, manual e intelectual. Quem opera uma máquina, ainda que o faça mediante um ordenador eletrônico, usa ao mesmo tempo as mãos e o cérebro.
Mais ainda: toda a evolução do homem se deve a essa óbvia associação entre o pensamento e a ação. Por isso mesmo, o filósofo Agostinho da Silva, um dos mais inquietantes pensadores do século 20, diz que o homem não nasceu para trabalhar, e sim para criar. Os marxistas definem essa diferença, ao identificar, no artífice do passado, o criador, uma vez que ele dominava todo o processo de fabricação, e uma peça não era exatamente igual à outra. Na produção industrial moderna, em que cada trabalhador executa – durante a jornada, meses, e quase sempre por muitos anos, quando não toda a vida ativa – a mesma tarefa, fazendo peças separadas, que serão montadas depois, só há realmente trabalho.
Trabalho vem do latim tripalium, que era um instrumento de suplício no mundo romano. O trabalho sempre se associou ao sacrifício, e não ao prazer. A criação, ao contrário, tem uma expressão lúdica. O marceneiro que faz um armário, partindo de sua própria imaginação e desenho, é um criador. Até mesmo o lenhador, que escolhe na floresta a árvore a abater, é de certa forma um criador. Mas o operário que lixa 500 peças por dia ou aperta parafusos (hoje os robôs o substituem) na linha de montagem, como no belíssimo filme de Chaplin, Tempos Modernos, é um homem submetido ao suplício permanente. Na visão magistral de Marx, o trabalhador de hoje é o “complemento vivo de um organismo morto”.
Os operadores que usam o teclado e “interagem” com a tela não têm apenas seu movimento manual determinado pela máquina, mas também sua mente. Como os bancários, que lidam com milhões alheios durante o dia, eles não conseguem dormir em paz: uns sonham com cifras, outros com bytes. A grande tragédia dos trabalhadores modernos, submetidos às exigências da tecnologia, é se sentirem peças isoladas, exatamente iguais às outras. Não tendo de intervir com sua inteligência, e estando submetidos às tensões de cada minuto, são facilmente substituídos pelos robôs, cuja programação é obedecida sem que as emoções os perturbem.
Um escritor paulista – e conhecido empresário –, Nelson Palma Travassos, achava que as máquinas seriam a redenção do homem moderno, e substituiriam os escravos da Antiguidade, libertando-o para o exercício livre da inteligência – desde que esses robôs fossem de propriedade do Estado, que distribuiria os bens produzidos com equidade a toda a população. A tecnologia não está a serviço dos homens. Está a serviço dos ricos, que a usam, sobretudo na transferência instantânea de capitais, roubando dos depositantes e dos acionistas, enfim, de todos, porque o Estado, ou seja, o povo, arca com o prejuízo. Só há duas classes sociais, a dos ricos e a dos pobres.
Durante muito tempo, ricos eram os que detinham os meios físicos de produção, isto é, as terras, as máquinas, enfim, o capital produtivo. O liberalismo novo, com a globalização da economia, mudou o eixo da razão. Hoje, são os bancos que dominam todo o processo. E os bancos não são administrados – salvo exceções – pelos acionistas, mas sim por executivos tais como os que vimos nos escândalos recentes de Wall Street.
Observadores atentos, como o financista Paul B. Farrell, comentarista do Wall Street Journal, mostram que a desigualdade social nos Estados Unidos é hoje maior do que em 1929, quando se iniciou a Grande Depressão, e que, se os ricos não pagarem pesados impostos que permitam melhor distribuição da renda, os pobres, não só ali, mas no mundo inteiro, se sublevarão. É uma questão de vida e morte.
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