Maria Euzimar Berenice Rego Silva
Professora do Departamento de Educação/Campus Avançado de Pau dos Ferros/UERN
Nessa análise pretendemos identificar alguns aspectos relevantes para compreensão do papel do Estado numa sociedade capitalista, segundo o pensamento marxiano e gramsciano. Privilegiamos como referência fundamental para o enfoque desses aspectos, as visões esboçadas por Marx no 18 Brumário2 e por Antônio Gramsci na obra Maquiavel, a Política e o Estado Moderno3, enfatizando a importância das discussões presentes nessas obras para a atualidade na perspectiva de apontar considerações rápidas sobre seus limites e contribuições para uma teoria do Estado.
O 18 Brumário e a análise do Estado em Marx
Como tão bem apontou Mandel4, a trajetória intelectual de Marx é feita de rupturas e de encontros, na medida que este não só faz uma análise crítica das interpretações, teorias e idéias sobre os acontecimentos do seu tempo, como também participa ativamente desses acontecimentos. Apoiamo-nos nesse autor para afirmar que essas “[...] rupturas e conflitos sucessivos [...] influenciaram a evolução intelectual de Marx”5, e, permitiu-lhe analisar sistematicamente a sociedade capitalista em seus diversos aspectos, dentre eles o papel do Estado.
Evidenciamos, em primeiro lugar, alguns comentários em torno da polêmica discussão sobre a existência ou não de uma teoria marxiana ou marxista do Estado. Problemática esta que se constitui numa tarefa que, dia após dia, se refaz no campo teórico. Esta dimensão já foi abordada por Norberto Bobbio6, um severo crítico do marxismo, em um instigante artigo onde questiona: “Existe uma doutrina marxista do Estado?”. A resposta que o autor vai dar, por si só já é motivo para polêmica, é que, para ele, por não existirem delineamentos em tal teoria sobre a questão crucial do “como” se governa, não existe tal elaboração no pensamento marxiano ou até mesmo socialista.
Partimos do pressuposto que, embora não exista na teoria marxiana a ou as obras que tenham como objetivo específico caracterizar o Estado, “[...] a análise marxista do capitalismo seria ininteligível, se Marx não tivesse elaborado, também e necessariamente, uma compreensão dialética do Estado.”7 e das classes sociais, haja vista que todas as contradições e antagonismo vividos no sistema capitalista permeiam essas categorias. Ademais identificamos que Marx
apanha as dimensões políticas e econômicas do Estado ao compreender o Estado burguês como uma expressão essencial das relações de produção específicas do capitalismo. [...] mostra como o Estado é, em última instância, um órgão da classe dominante.8
Abordaremos agora, de modo sintético, o enfoque do Estado francês feito por Marx na obra O 18 BRUMÁRIO9. Tendo em vista que o golpe do Bonaparte sobrinho é um momento importante no processo de crise do Estado burguês francês e que este é visto como uma paródia da revolução anterior, uma Revolução Burguesa, produto de uma crise que se deu nos níveis: econômico, social e político10, muito da análise de Marx vai está diretamente relacionada com os fatos ocorridos em 1789. Apontando que, ao contrário do que pensava Victor Hugo, o golpe de Estado, não era um “ato de força de um indivíduo” e sim produto específico da luta de classes. Para Engels, foi Marx quem descobriu que “todas as lutas históricas” são “expressão mais o menos clara de lutas entre classes sociais” e que estas são “condicionadas pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e pelo modo de troca, este determinado pelo precedente”11.
Ao se propor entender o Estado francês à época do 18 Brumário de Luís Bonaparte ele procura fazê-lo a partir da análise histórico-sociológica do momento vivido. Se, por um lado, o Estado pode ser visto enquanto categoria abstrata, ou seja, pela análise de uma ou algumas determinações do fenômeno. Por outro, a maior quantidade de determinações nos aproximará de uma construção mais concreta do mesmo Estado. Então, podemos resumir o Estado a um instrumento de dominação de uma classe sobre as outras, o que não será necessariamente uma postura metodologicamente incorreta, entretanto, é uma postura que não absorve o fenômeno estatal em suas outras determinações. De outra forma, o Estado pode ser captado em seu momento concreto, o que
implica a introdução de novas determinações não apenas na esfera econômica (articulação hierarquizada de diferentes modos de produção) e na social (complexificação da estrutura e dos conflitos de classe), mas também na esfera do político (novas características do fenômeno estatal e maior especificação de seu papel na reprodução global das relações de produção)12
Sem esquecer a primeira possibilidade, que o Estado é fruto das contradições e representa o domínio de classe, entretanto, procurando captar o Estado Francês à época do Golpe de 1851 como síntese de múltiplas determinações, é que Marx vai analisar a crise que finda com o golpe de Luís Bonaparte. A situação vivida é vista como produto do conjunto da luta de classes vigente na França, onde são observadas, em suas recíprocas influências, as repercussões das crises econômicas vividas naquele momento, o significado do governo bonapartista no processo de salvaguarda do capitalismo e a questão da autonomia do Estado em relação à sociedade.
Esta análise, escrita sob encomenda, antecipa uma série de discussões que mobilizam pensadores ainda nos dias de hoje. Marx observa que a república parlamentar burguesa é a expressão privilegiada da dominação de uma classe e que esta era a forma política da sociedade burguesa. Inexiste no autor a dicotomia entre forma e conteúdo, uma e outra se relacionam dialeticamente, o parlamento é o conteúdo da democracia burguesa. É este caráter completamente desenvolvido de dominação que vai criar um espaço público de discussão incentivador a que outras classes expressem a sua própria política. O parlamento, como espaço de debate, ainda que débil de poder real, pois este encontra-se concentrado no Poder Executivo, permite aos opositores denunciar o caráter classista de tal Estado. A burguesia, também na esfera política, cria as condições para a sua própria superação. A democracia e o parlamento são ingredientes que permitem questionar as bases da dominação de classe. Portanto, no momento em que existiu a real possibilidade de abalarem-se, por meio dos instrumentos democráticos, as bases de tal domínio a burguesia não só buscou por todas as maneiras acalmar as possibilidades oposicionistas e revolucionárias que existiam no interior do parlamento, como, em não encontrando como fazê-lo, conspirou para a sua própria supressão.
Importante, igualmente, é a avaliação que o autor apresenta do movimento das classes e de suas frações na conformação da dominação. Podemos verificar que, ao deter-se sobre a situação concreta da França, se desfaz da percepção do Estado abstrato e volta as suas preocupações sobre o movimento dos segmentos representados nos diversos partidos. Estes não podiam ser visto, como não o foi, como um simples aglomerado de pessoas de ocasião. Estes representavam interesses concretos e em conflito na sociedade francesa. A burguesia não era um bloco monolítico e homogêneo, muito pelo contrário, as fissuras e as contradições desta classe é que permitiu a tomada de poder pelo Bonaparte sobrinho. Este golpe é a expressão da incapacidade da burguesia gerir os negócios por meio de seus próprios representantes, para tal, “entregou” ao Chefe do Poder Executivo, dirigente de uma imensa organização burocrática e militar, a capacidade de gerir os negócios do Estado em seu lugar.
É essa análise concreta do fenômeno estatal que faz Marx em O 18 Brumário. Assim ele se refere: “unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a tal ponto sua posição em face da sociedade civil que lhe basta ter à frente o chefe da Sociedade de 10 de dezembro, um aventureiro surgido de fora”.13
Todavia, segundo IANNI, isso não impossibilita que o Estado possa representar, simultânea e contraditoriamente, não só os interesses da burguesia, mas também interesses de outras classes sociais. Para este autor, “o que se verifica, em situações concretas, é que as classes são representadas diferencialmente no Estado burguês.”14
GRAMSCI E A TEORIA AMPLIADA DO ESTADO
Antes de adentramos de fato na obra de Antônio Gramsci, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, vamos enfocar alguns aspectos sobre Gramsci e sua relação com Marx. Sendo Gramsci um profundo investigador das superestruturas com ênfase no importante papel da cultura e da política para construção de um projeto social hegemônico (embora que seus escritos sejam mais de ordem prática do que de fundo ideológico), segundo GERMANO15, “O objetivo de Gramsci [...] era voltado para política, não somente por paixão, mas, sobretudo, pela necessidade revolucionaria”, enquanto sujeito ativo no seu contexto, participou dos movimentos operários de Turin durante a Primeira Guerra Mundial e, consequentemente, libertários do mundo, ao entrar no Partido Socialista e Comunista Italianos. Após a Primeira Guerra Mundial a Itália caracterizou-se pela disputa entre os partidos progressistas e conservadores que culminou com a instalação e avanço do fascismo no início da década de 20, ancorado na supressão dos direitos políticos, com forte repressão e censura aos movimentos e intelectuais de esquerda, levando a sua prisão. E no plano internacional, destacava-se a derrota na Europa dos movimentos socialistas revolucionários apoiados em grande parte pelas classes trabalhadoras. Nesse contexto, cheio de conflitos, ele buscou construir uma estratégia político-teórica e revolucionária de construção do socialismo na conjuntura específica da Itália de seu tempo. Como afirma Hobsbawn,
Não foi senão com o colapso das esperanças revolucionárias, no início dos anos 20, que se tornou premente, mais uma vez, a necessidade de uma reflexão sistemática sobre a política. Ela deveria abranger tanto a natureza dos regimes socialistas quanto a natureza de luta pelo poder, no decorrer de um período em que uma ‘longa guerra por posição’ fosse mais provável do que uma batalha decisiva. A derrota da revolução soviética na Europa, a necessidade de analisar e explicar esta derrota e de encontrar uma estratégia alternativa, mais promissora, constituíram o ponto de partida do pensamento maduro de Gramsci (1975, p.67 apud GERMANO: 1992, p.125).
Dado esse caráter revolucionário de autêntico observador e participante ativo da realidade sócio-econômica, política e cultura em que vivia, ele vai se basear no pensamento marxiano, embora a prisão tenha lhe privado do contato e discussão de alguns trabalhos de Marx publicados nesse período. As grandes preocupações que nortearam a investigação de Gramsci dizem respeito à três questões fundamentais: a especificidade da formação do capitalismo e do Estado Nacional italianos, decorrente da fragilidade de sua burguesia; a derrota da revolução Socialista no Ocidente, causada basicamente pela falta de percepção de que as estratégias utilizadas no Oriente deveriam diferir das do Ocidente; a formação de uma nova civilização, de um novo bloco histórico, um novo homem e mulher que não seriam seres unilaterais mais seres múltiplos, omnilaterais.
Passamos agora à análise da obra Maquiavel, a Política e o Estado Moderno(Parte I: O Moderno Príncipe). Ele parte do princípio que Maquiavel, sua obra O Príncipe — um livro “vivo”, representou uma grande inovação nas concepções e intervenções políticas da sua época, se constituindo numa ação política positiva ao representar “um germe fecundo e precoce de uma revolução nacional” (GRAMSCI: 1991, p.08), pois é nela que Maquiavel dar certa autonomia à política e aborda a necessidade da construção de uma “ vontade coletiva naciona-popular” e seu fracasso na Itália, “pela existência de determinados grupos sociais que se formaram a partir de uma burguesia comunal e da influência da igreja, sede do Sagrado Império Romano”. Para ele “faltou sempre uma força jacobina eficiente, exatamente a força que nas outras nações suscitou e organizou a vontade coletiva nacional-popular e fundou os Estados modernos”, ou seja, que certas partes das forças camponesas não irromperam na vida política italiana (Idem). Contudo, mesmo retomando essa análise não se restringe ao patamar dado ao político em Maquiavel, e enfoca a necessidade de situá-lo como um homem de seu período histórico, dentro de determinadas condições internas, salientando que na Itália daquele tempo não havia instituições representativas consolidadas como em outros países/nações européias. Isso se dava, para ele, pelas particularidades italianas e da predominância das relações internacionais frente as internas:
que resultou: 1) das lutas internas da república florentina e da estrutura particular do Estado que não sabia libertar-se dos resíduos comunais-municipais (...) de feudalismo; 2) das lutas entre os Estados italianos por um equilíbrio no âmbito italiano, que era dificultado pela existência do Papado e dos outros resíduos feudais, municipalistas, da forma estatal urbana e não territorial; 3) das lutas dos estados italianos mais ou menos solidários por um equilíbrio europeu, ou seja, das contradições entre as necessidades de um equilíbrio interno italiano e as exigências dos Estados europeus em luta pela hegemonia. (Idem p.15)
Esse caráter revelativo de Maquiavel “como estilo de homem de ação (...) de quem quer impulsionar a ação (...) de ‘manifesto’ de partido” (Idem p.10). É direcionada, supõe ele, “à ‘quem não sabe’; a classe revolucionária da época, o ‘povo’ e a ‘nação’ italiana, a democracia urbana”, em contraposição, com a ideologia religiosa da época. Fala que esse mesmo processo de contraposição ao que está dado aparece na filosofia da praxis e joga nela a possibilidade de ser a força progressista da História: “romper a unidade baseada na ideologia tradicional, sem cuja ruptura a força nova não poderia adquirir consciência da própria personalidade independente” (1991: p.11). Por isso, o “maquiavelismo”, segundo Gramsci, serviria tanto para fins políticos conservadores como progressistas, apostando mais no seu caráter revolucionário.
Gramsci destaca a existência de três elementos essenciais da política ou de qualquer ação coletiva: a “existência real de governados e governantes, dirigentes e dirigidos”; o partido político, enquanto “o modo mais adequado para aperfeiçoar os dirigentes e a capacidade de direção” (1991, p.20); e o ‘espírito estatal’.
No texto aqui analisado, Gramsci procura discutir de fato, o partido político da modernidade enquanto encarnação do Príncipe. Pois, para ele, podemos compreender em formações históricas determinadas sua consciência histórico-política a partir da análise dos partidos políticos. Assim, o “Príncipe” é a encarnação de como se manter o poder em condições de normalidade, e ainda, como criar uma nova governabilidade.
As duas questões fundamentais na estrutura programática do partido progressista abordadas no seu pensamento correspondem: por um lado, à construção de uma “vontade coletiva nacional-popular”; e, por outro lado, a dedicação pela reforma intelectual e moral, não deixando de apresentar em correlação com esta um programa de reforma econômica.
Aborda também a existência de dois partidos básicos: os totalitários cujas “funções não são políticas, mais só técnicas, de propaganda, de polícia, de influência moral e cultural - função política indireta” (Idem p. 23); e os tradicionais que possuem um caráter ‘educativo’. Esses assumiriam duas formas básicas: a) um partido de uma elite, de homens de cultura com uma função de dirigir; e b) um partido de não-elite (de massas) que tem como função política a ‘conquista’, sustentada numa fidelidade genérica, fazendo com que, de certa forma, a massa fosse simplesmente de ‘manobra’. Ele vai mais longe e destaca que para existirem os partidos é obrigatório a confluência de três elementos: a) “uma massa de homens comuns”, sem um potencial realmente criativo cuja participação dá-se pela disciplina e pela fidelidade; b) “um elemento de coesão”, disciplinador e centralizado nacionalmente (o principal); e c) “um elemento médio” cuja característica é de articulação dos outros dois elementos, colocando-os em contato físico, moral e intelectual. Ele conclui, dizendo que os partidos “não pode existir por força própria”. Visto que eles “são exatamente os elementos das lutas internas” (Idem p.26-7), a história de um partido confunde-se com “a história de um determinado grupo social” e falar da história de um determinado partido significa “escrever a história geral de um país, de um ponto de vista monográfico, destacando um seu aspecto característico” (Idemp.24). E ainda, “do modo de escrever a história de um partido resulta o conceito que se tem daquilo que é e deva ser um partido”(Idem p.25).
Chama atenção para relação entre os agricultores e os industriais, pois como os últimos não têm um partido próprio, usam todos os outros partidos. E os primeiros possuem um partido permanente, assim há estreitos interesses entre eles. Indo dos meramente corporativos aos princípios fundamentais do liberalismo.
Tendo como base a análise dialética e materialista, chamada por ele de filosofia da praxis, procura afasta-se das interpretações economistas, dentro e fora da esquerda, sem no entanto cair no idealismo. Enfatiza a necessidade do desenvolvimento de um rigor lógico, com relevo científico, nas teorias e práticas não só da historiografia mais também na ciência e arte política. É nesse sentido, que vai tomar como referência para análise do caso italiano as abordagens de Sorel para explicação do caráter abstrato da “ideologia-mito”, o qual ao condenar o jacobinismo não chegou a compreensão do partido político ficando apenas no nível profissional; do oportunismo de Croce, que esconde atrás de um materialismo absoluto o determinismo e o idealismo
Então, ele não nega que o político se constrói a partir da divisão social do trabalho, mais aponta uma autonomização do político frente ao econômico, enfatizando que nem sempre uma crise econômica desencadearia uma crise política. Com isso, percebemos claramente que ele privilegia as estruturas conjunturais, e mais, sustenta que só é possível entender esta autonomização do político na medida que compreendemos o conceito de bloco histórico e a distinção no Estado entre sociedade civil e política.
Um outro aspecto central para Gramsci é a vontade coletiva enquanto liderança do povo para sua emancipação, onde percebe-se a importância dada à questão do consenso e da força, enquanto parte do caráter educativo da política/dos partidos para sua teoria ampliada do Estado, a qual pressupõe a existência de duas esferas: a sociedade política, onde estaria o poder repressivo dos dominantes; e a sociedade civil constituída pelas associações ditas “privadas” (escola, igreja), momento da persuasão e do consenso, onde a dominação se expressa sob a forma de hegemonia. Já na sociedade política sob a forma de repressão/ditadura. Onde, toda relação de hegemonia seria uma relação pedagógica e educativa na medida que práticas, pensamentos e ideologias disputam o predomínio do poder. “Se a hegemonia é ético-política é também econômica”(p. ), a qual surge da “ dupla perspectiva na ação política e na vida estatal (...) da força e do consentimento; da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilização; do momento individual e do momento universal [...] da agitação e da propaganda; da tática e da estratégia” (Idem p.41).
É com base nesses pressupostos que Gramsci enfoca a importância da definição de uma tática e uma estratégia enquanto elementos chaves na luta política e revolucionária, bem como, a importância de identificarmos/compreendermos os momentos e forças presentes na conjuntura em que a luta se desenvolve.
É nesse processo de crise orgânica do Estado como crise de hegemonia da classe dirigente e do Estado no seu conjunto, e dado o potencial mais dinâmico de se recompor rapidamente da crise pelos partidos da classe dirigente, que pode surgir o fenômeno do cesarismo ou bonapartismo, ou seja, o poder encarna-se numa “personalidade heróica” de caráter militar ou carismático, impedindo o funcionamento “normal” da democracia. Gramsci enfatiza que este fenômeno tanto pode ser reacionário (não há uma mudança para um novo tipo de Estado e as correlações de forças permanecem as mesmas, como Napoleão Bonaparte); como progressista (há uma mudança qualitativa e quantitativa em farvor das forças progressistas, são exemplo típicos César e Napoleão I). Particularmente, no mundo moderno, com as grandes coalizações de classes (de caráter econômico-sindical e político partidário), pode ocorre soluções bonapartistas mesmo sem haver um grande “herói”, e, embora elas se diferenciem das citadas acima, onde “as forças militares regulares ou de fileiras constituíam um elemento decisivo para o” (Idem p.64) seu advento, que se dava pela ação militar precisa desembocando em golpes de Estado, estão mais próximas do Golpe de Estado descrito por Marx no 18 Brumário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O norte unificador do marxismo quanto à concepção de Estado expressa-se na natureza de classe do Estado capitalista, onde os interesses predominantes são os das classes dominantes.
Para Marx o Estado capitalista é resultante das divisão da sociedade em classes e não é um poder neutro acima dos interesses das classes. Sua ênfase coloca-se no caráter de dominação de classe do Estado, considerando-o, exclusivamente, um mecanismo de opressão e de repressão ao proletariado/trabalhadores para garantir a acumulação e reprodução do capital, e com isso, a reprodução do capitalismo.
Enquanto que para Gramsci, o Estado é a própria sociedade organizada de forma soberana. A sociedade é assim vista como uma organização constituída de instituições complexas, públicas e privadas, articuladas entre si, cujo papel histórico varia através das lutas e relações de grupos específicos e poderes, que se articulam pela busca da garantia da hegemonia dos seus interesses. Em sua concepção “ampliada do Estado”(sociedade civil mais sociedade política, rompe com a idéia do Estado enquanto representante exclusivo da burguesia, de Marx e outros marxistas, identificando que quem tem a hegemonia do aparato estatal deve se preocupar com a questão da legitimidade do governo, pois, nenhum poder se sustenta só na sociedade política mais também com a sociedade civil (constante paradoxo entre força e consenso). Assim, legitimação e acumulação do capital não são funções que derivam de uma natureza instrumental do Estado para manter a ordem e harmonia, mais é essencialmente resultante do conflito entre as forças presentes na sociedade e dentro do próprio Estado/aparelho estatal. Diferenciando-se, neste sentido, de Marx que evidencia o aspecto político da sociedade civil.
Se em sua análise Marx foi capaz de antecipar muitas das discussões posteriores, destacando algumas das características do Estado centralizado moderno: a constituição de uma aparelho militar e civil(exército, burocracia), que a república parlamentar se constitui como um espaço político - uma forma pura de dominação ou forma onde a burguesia exercia seu poder sem mediações - no qual a burguesia teve que desfazer-se tendo em vista que constituía-se num momento no qual as maiorias poderiam usurpar este poder. E ainda, apontar, nessa obra, que o Estado capitalista se configura numa resposta à necessidade de mediar os conflitos de classe e manter o domínio e o controle das lutas sociais respaldados nos interesses das classes que possuem o maior poder econômico na sociedade. Gramsci, por sua vez, talvez por ser mais contemporâneo, permite uma aproximação mais efetiva das características do Estado no nosso século.
Evidenciamos como contribuição mais importante de Gramsci àquelas observações feitas em sua metodologia teórica sobre como investigar na ciência política, assim como, o destaque dado aos intelectuais e à ideologia na análise dos processos históricos. E por último, não vê o Estado apenas como um aparelho de violência/repressão mais um aparato jurídico-político cuja organização e intervenção varia de acordo com a organização social, política, econômica e cultural da sociedade, mediadas pelas correlações de forças entre as frações de classes vigentes.
1 Este texto sintetiza partes do trabalho final da disciplina Estado e Sociedade, ministrada pelo Prof. Dr. José Antonio Spinelli e pela Profª Drª Eleonora Tinôco, Mestrado em Ciências Sociais, UFRN, escrito em 1999.
2 MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
3 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. 8.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
4 MANDEL, Ernest. O lugar do marxismo na história. São Paulo: Aparte, 1987.
5 Ibidem, p. 79.
6 BOBBIO, Noberto. Existe uma doutrina marxista do Estado? In.: ______. O Marximo e o Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
7 IANNI, Octavio (Org.). Marx: sociologia. SP: Ática, 1992.(Grandes cientistas sociais, 10).
8 Ibidem, p. 32.
9 “Mês do calendário republicano francês. Em 18 Brumário (9 de novembro) de 1799, Napoleão Bonaparte levou a cabo um golpe de Estado e estabeleceu uma ditadura militar. Por ‘segunda edição do 18 Brumário’ Marx entende o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.” (MARX, Karl. O Dezoito brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Moraes, 1987. p. 15 - nota de rodapé nº 8).
10 Sobre as revoluções burguesas vê: AQUINO, Rubim Santos Leão de et alii. História das sociedades: das sociedades modernas às contemporâneas. 32.ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1995; HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. 10.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997; HOBSBAWM, Eric. J. A Era do capital. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
11 ENGELS, F. Prefácio de Engels para terceira edição alemã. In.: MARX: 1997. p.18
12 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994, p. 15-6.
13 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Escriba, 1968. p.131 apud IANNI, Octavio. Introdução. In.: Karl Marx. 3.ed. São Paulo: Ática, 1982. p.36.(Grandes cientistas sociais, 10)
14 Ibidem, p. 36.
15 GERMANO, José Willington. Gramsci: igreja e intelectuais (acerca da formação do estado burguês na Itália). Educação em Questão, Natal, RN: EDUFRN/Departamento de Educação, v.4, n.1/2, jan./dez.1992. p. 125.
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