Escrito por Gabriel Brito
Na última semana, mais uma categoria do funcionalismo público voltou a se manifestar contra as políticas do governo de turno. Dessa vez, foram os trabalhadores estaduais da saúde do estado de São Paulo, vítimas das políticas privatistas que os últimos governos tucanos implantaram na unidade mais rica da federação.
Cansados das péssimas condições de trabalho e salário, cerca de 2 mil médicos, enfermeiros e funcionários administrativos se manifestaram no “quarteirão da saúde”, onde se localiza o complexo do Hospital das Clínicas de São Paulo e outros prestigiados institutos de saúde, como o Incor e o Emilio Ribas, que juntos contam com os serviços de cerca de 15 mil trabalhadores.
“Depois de muito tempo, voltamos a ter várias movimentações pelo estado, afinal, são praticamente 10 anos sem aumento salarial. Essa foi a questão inicial levantada pelos trabalhadores e apresentada pelo sindicato ao governo”, afirmou Paulo Spina, funcionário do CAISM (Centro de Atenção Integral à Saúde Mental) Água Funda e membro do Fórum Popular da Saúde, fundado para congregar toda a militância da área contra os ataques do poder público a um dos direitos mais básicos pelo qual deveria zelar.
Como é de se supor, a pauta principal passa por uma melhoria salarial, uma vez que os funcionários se encontram em parâmetros realmente alarmantes de remuneração, sendo corriqueiro encontrar tanto trabalhadores dos ramos hospitalares como administrativos ganhando salários na faixa de 400, 500 reais, amarrados a complementos que se baseiam em metas produtivistas, caracterizando o que se compreende como ‘mercantilização da saúde’. Além disso, contam com o irrisório valor de 4 reais no vale-alimentação.
“Pedimos 26% de aumento salarial. Após meses de discussões, a Secretaria Estadual da Saúde está oferecendo até R$ 39,00 no Prêmio de Incentivo, uma das partes da nossa remuneração. Isso representa de 1% a 4% no salário total! E zero para outra parte dos trabalhadores, que ou não recebe essa gratificação ou foi deixada de fora dessa proposta indecorosa”, repudia o SindSaúde, filiado à CUT e representante dos trabalhadores nessa peleja.
Como se vê, o embate passa pelos mesmos pontos reivindicados por diversas categorias, como os professores, duramente reprimidos no ano passado pelo governo Serra. Um pouco mais estrategista, o tucano da vez, Alckmin, através de sua Secretaria de Saúde, resolveu “acatar” a pauta apresentada pelos manifestantes na última semana e prometeu analisá-la.
Diante do tímido sinal positivo, o sindicato decidiu manter a categoria em estado de greve, que ainda não significa paralisação. Esta será discutida e votada na assembléia marcada para o dia 1º de julho. Resta saber se a estratégia foi a mais correta ou se havia espaço para mais pressão, manifestação e a greve efetivamente, caso o governo não demonstrasse que o atual estado de coisas mudaria.
“O governo não deu nenhum sinal claro de que realmente iria atender às reivindicações e já acharam por bem ficar só no estado de greve. E olha que os funcionários administrativos ficaram fora dessa negociação! Por isso, eu entendo que havia espaço para ir mais fundo, existia esse sentimento nos trabalhadores mobilizados e creio que existiam condições de terminar a semana em greve e com o governo na parede”, lamentou Spina.
O SindSaúde garante que continua de olho no governo e que acompanhará nos próximos dias se sua pauta tem sido realmente considerada. Mas, aparentemente, não há motivos para tanta paciência. Afinal, os tucanos, obviamente sugados pelos dogmas neoliberais e financiamentos de campanha recebidos de empresas privadas, aplicam um verdadeiro desmonte no setor, pelas mais variadas frentes.
Basta ver as exigências do Fórum da Saúde e do próprio sindicato. Além da evidente necessidade de melhoria salarial, pede-se também revogação da lei que reserva 25% dos leitos do SUS ao setor privado, criando a chamada “fila dupla”, largamente repudiada por toda a categoria e população.
Fora isso, ainda há denúncias de sobra sobre o já tradicional assédio moral, os obscuros convênios administrativos e a voracidade das Organizações Sociais (OS), estratégia tucana para repassar a gestão de hospitais públicos e unidades de atendimento à iniciativa privada. E não falta história a respeito das OS, apontadas já em 2009 pelo ex-deputado Raul Marcelo como “porta aberta à corrupção”, em seu relatório alternativo, aceito unanimemente, da CPI dos gastos das OS – depois engavetada.
A mais escandalosa dela, verdadeiro escárnio, foi talvez a maior propulsora da paralisação que chegou ao atual estado de greve. “O estopim para o movimento grevista foram as denúncias de mau uso de verba pública. O próprio TCE denunciou que a Seconci (OS que gerencia vários hospitais) tinha recebido dinheiro para 31 UBS (Unidade Básica de Saúde) e gastou o equivalente a 14, aplicando o resto no mercado financeiro”, contou Paulo Spina.
Diante do escândalo, não restou alternativa que não fosse uma manifestação pública que causasse algum incômodo, ainda mais num momento em que várias outras insatisfações da população e da categoria podem ser aglutinadas.
Pois como dizem os representantes do sindicato, “esse governo diz que é um novo governo, que quer dialogar com os sindicatos, mas é o mesmo que há 16 anos não investe na saúde pública, terceiriza os serviços, paga os piores salários do Brasil e reduz o atendimento aos usuários dos serviços públicos”.
Entretanto, o bom e velho pragmatismo político - entendido por alguns como anestesia e cooptação geradas pelos anos PT no Planalto - volta a entrar em cena, como explica o representante do Fórum da Saúde envolvido nos protestos.
“O problema é que, em escala federal, a lógica das políticas em saúde pública é a mesma. Tanto que uma das grandes brigas é fazer o governo acatar os 7% do PIB – nem 10% - para a saúde. Como eles não compram essa briga anti-privatista com o governo federal, fica difícil fazer isso no plano estadual”, explica Spina.
Para explicar tal ‘temor’, a afirmação alude ao fato, entre outros, de o presidente Lula ter criado, nos estertores de seu mandato, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que na prática implantaria a mesmíssima lógica verificada nas Organizações Sociais que devastam a saúde pública paulista. Neste caso, a Ebserh gerenciaria os Hospitais Universitários. E o governo Dilma mantém o objetivo de aprovar tal idéia, precisando somente colocá-la novamente em votação, uma vez que a MP 520/10, que tratava do tema, perdeu o prazo de validade para ser apreciada.
Quanto ao movimento de luta pela saúde, longe de ser claramente revigorado, através especialmente de seus trabalhadores, sofre a mesma encruzilhada que afetou diversas categorias no funcionalismo público: o medo de defender todas as diretrizes que visam uma saúde pública de qualidade, confrontando o governo que um dia representou e mobilizou todos os desejos de mudanças profundas nas estruturas do país.
Ainda assim, sempre há um limite. No que se refere ao governo Alckmin, se mostrar a mesma intransigência dos anteriores, a chance de o movimento se radicalizar existe. Até porque, em questões essenciais à vida da população, o apoio das ruas costuma fazer grandes ecos, como se vê exatamente nesses dias no Rio de Janeiro, com toda a solidariedade da população aos seus bombeiros revoltosos – pelos mesmos motivos de nossos médicos, enfermeiras, administradores etc. daqui.
“Em janeiro, o governador Alckmin, os secretários e os altos salários do estado tiveram 26% de aumento. Enquanto nossos salários-base variam de R$ 180,35 a R$ 414,30, o salário base do governador passou para R$ 18.725,00”. Os 26% de aumento que reivindicamos custam menos do que os R$ 600 milhões gastos com os 26% de aumento do governador, dos secretários e dos altos salários do estado”, cutuca o sindicato.
Independentemente dos matizes políticos e seus condicionantes, com as freqüentes discórdias que causa entre a esquerda e os movimentos populares, está claro mais uma vez o que se joga no rosário de denúncias dos trabalhadores da saúde de São Paulo: o eterno embate entre os que defendem o patrimônio público e aqueles que lutam com todas as forças (e financiamentos) para repassá-lo, seja qual for a área, à iniciativa privada. “Somos totalmente contra a lei da fila dupla, que permite à iniciativa privada utilizar 25% do SUS nas unidades públicas de saúde, por isso jogamos tal questão com toda a força no debate. Queremos a valorização do funcionário e de sua carreira, e exigimos zero atendimento privado no SUS, sem privilégio algum, pois saúde é direito de todos e o Hospital das Clínicas, sem esquecer dos demais lugares, deve servir ao povo”, resume Spina.
Gabriel Brito é jornalista.
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