Joycemar Tejo
A "verdade" é uma palavra tão emblemática, tão cheia de significados, que acaba adquirindo, em nosso inconsciente, um aspecto "luminoso". É associada à luz, à integridade, à retidão, ao bom e justo, com todo o relativismo que esses termos possam conter. O inimigo da verdade, contrario sensu, é a mentira, a escuridão, o mal. Quem tem medo da verdade, portanto? Quem tem medo -vamos direto ao ponto- da Comissão Nacional da Verdade? As Forças Armadas brasileiras têm.
Não é difícil imaginar o motivo. Por mais de 20 anos, foram escamoteadores da verdade. Encobriram o País com densa nuvem escura, que ainda hoje, tempos depois, deixa uma sombra sinistra em diversos aspectos da vida brasileira- das arbitrariedades cometidas nas delegacias de polícia por estes rincões afora ao reacionarismo incrustado nas mentes fardadas de hoje. O que temos, e isso é fácil verificar, mormente quanto mais se afasta dos centros urbanos, é uma democracia (1) capenga, que ainda hoje tenta se libertar de seu passado. E, para se livrar do passado, é preciso justamente... conhecê-lo.
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O governo federal tem dado mostras de que não irá recuar, afinado com os diversos segmentos da sociedade civil que têm se posicionado a favor da abertura dos famigerados "arquivos da ditadura", como a OAB (2). Em vista disso, as Forças Armadas têm feito seu (não desprezível) lobby, deixando claro seu descontentamento, como ficou explícito em recente documento enviado a Nelson Jobim (3). Documento este que é um primor de desfaçatez: ao mesmo tempo em que reconhece ser direito das famílias buscarem seus entes desaparecidos, diz que não se pode, com base nisso, "promover retaliações políticas e manter acesa questão superada" (sic).
Revanchismo! É disso que os militares acusam aqueles interessados em apurar a verdade. Nós, os inimigos da mentira, somos os revanchistas: errados somos nós. É como a fábula de Esopo (ou de La Fontaine?), sobre como o leão, ferido pelo animal que tentara abater, se retira lambendo os machucados, gemendo queixoso: "aquele animal é muito cruel: ele se defende, quando atacado". No vocabulário militar -ao menos dos reacionários, crias de 64- buscar justiça é revanchismo. Deveríamos ser presas dóceis do leão.
A dignidade da pessoa humana é um valor de importância ímpar nos ordenamentos jurídicos dos países civilizados. Sendo o homem um "deus em flor", como diz Garaudy, evocando a tradição humanista do marxismo (tradição essa muitas vezes vilipendiada, em nome de um certo "marxismo" autoritário), qualquer ofensa à dignidade humana deve ser repelida com todas as forças: mesmo que se derrube montanhas no processo. É o caso da tortura. É o caso de execuções sumárias, e do estupro de esposas em frente aos maridos. É esse tipo de conduta, realizada com maestria pelos sádicos do seu regime, que os militares não querem que apuremos: senão, estaremos sendo "revanchistas". Ocorre que justiça não é vingança, mesmo que o Supremo Tribunal Federal, em decisão equivocada -com voto do ministro, agora aposentado, Eros Grau, uma surpresa decepcionante para quem, como ele, foi torturado político- tenha entendido no ano passado que "a Lei de Anistia isentou todos os torturadores" (4).
Não há anistia para torturador, em absoluto. A questão está longe de ser caso encerrado. Superada? Nunca enquanto não se levantar o véu da mentira- para que a verdade se revele.
Eu estava falando, acima, do documento enviado pelas Forças Armadas a Jobim, o ministro da Defesa- e como tal documento é uma jóia de desfaçatez. Mas o cinismo se converte, rapidamente, no burlesco, na passagem em que alude ao "fim do governo CHAMADO de militar". Isso mesmo, reparem na palavra em destaque: querem tirar o corpo fora. Reescrever a História. De tanto mentir, fizeram, como no poema de Affonso Romano de Sant'anna, um país de mentira- diária/mente.
Notas
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O governo federal tem dado mostras de que não irá recuar, afinado com os diversos segmentos da sociedade civil que têm se posicionado a favor da abertura dos famigerados "arquivos da ditadura", como a OAB (2). Em vista disso, as Forças Armadas têm feito seu (não desprezível) lobby, deixando claro seu descontentamento, como ficou explícito em recente documento enviado a Nelson Jobim (3). Documento este que é um primor de desfaçatez: ao mesmo tempo em que reconhece ser direito das famílias buscarem seus entes desaparecidos, diz que não se pode, com base nisso, "promover retaliações políticas e manter acesa questão superada" (sic).
Revanchismo! É disso que os militares acusam aqueles interessados em apurar a verdade. Nós, os inimigos da mentira, somos os revanchistas: errados somos nós. É como a fábula de Esopo (ou de La Fontaine?), sobre como o leão, ferido pelo animal que tentara abater, se retira lambendo os machucados, gemendo queixoso: "aquele animal é muito cruel: ele se defende, quando atacado". No vocabulário militar -ao menos dos reacionários, crias de 64- buscar justiça é revanchismo. Deveríamos ser presas dóceis do leão.
A dignidade da pessoa humana é um valor de importância ímpar nos ordenamentos jurídicos dos países civilizados. Sendo o homem um "deus em flor", como diz Garaudy, evocando a tradição humanista do marxismo (tradição essa muitas vezes vilipendiada, em nome de um certo "marxismo" autoritário), qualquer ofensa à dignidade humana deve ser repelida com todas as forças: mesmo que se derrube montanhas no processo. É o caso da tortura. É o caso de execuções sumárias, e do estupro de esposas em frente aos maridos. É esse tipo de conduta, realizada com maestria pelos sádicos do seu regime, que os militares não querem que apuremos: senão, estaremos sendo "revanchistas". Ocorre que justiça não é vingança, mesmo que o Supremo Tribunal Federal, em decisão equivocada -com voto do ministro, agora aposentado, Eros Grau, uma surpresa decepcionante para quem, como ele, foi torturado político- tenha entendido no ano passado que "a Lei de Anistia isentou todos os torturadores" (4).
Não há anistia para torturador, em absoluto. A questão está longe de ser caso encerrado. Superada? Nunca enquanto não se levantar o véu da mentira- para que a verdade se revele.
Eu estava falando, acima, do documento enviado pelas Forças Armadas a Jobim, o ministro da Defesa- e como tal documento é uma jóia de desfaçatez. Mas o cinismo se converte, rapidamente, no burlesco, na passagem em que alude ao "fim do governo CHAMADO de militar". Isso mesmo, reparem na palavra em destaque: querem tirar o corpo fora. Reescrever a História. De tanto mentir, fizeram, como no poema de Affonso Romano de Sant'anna, um país de mentira- diária/mente.
Notas
(1) Democracia, bem entendida, a liberal-burguesa.
(2) Como se vê do abaixo-assinado movido pela OAB/RJ, em sua "Campanha pela Memória e pela Verdade"-
(3) Jornal "O Globo": "Forças Armadas resistem à Comissão da Verdade", em 09/ 03/ 2011.
(4) Brasil de Fato: "Brasil condenado na OEA"-. A condenação se refere àquela proferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no final de 2010, reconhecendo a responsabilidade do Brasil no desaparecimento de presos políticos.
Fonte: Diário Liberdade
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