Por Mauro Iasi.
“Nenhum intelectual deve ser
assalariado do pensamento oficial”
Silvio Rodriguez
Em um debate realizado no “Instituto Lula” que procurava tratar do tema“Caminhos progressistas para o desenvolvimento e a integração regional”
o Secretário executivo do Foro de São Paulo e dirigente do PT, meu
amigo, Valter Pomar externou a seguinte opinião: aqueles que defendem o
socialismo e aqueles que defendem um novo modelo de desenvolvimento
capitalista, além de concordar com a necessidade de uma integração
regional, reconhecem que existe um “déficit teórico”.
Tal déficit se manifestaria em três
pontos: na compreensão do capitalismo do século XXI, no balanço das
experiências políticas do século XX (o socialismo, a social democracia e
o nacional desenvolvimentismo) e na questão da estratégia. Neste último
ponto, segundo Pomar, “no imaginário de grande parte da esquerda
latino-americana Che ainda suplanta Allende, apesar de que estamos todos
envolvidos hoje numa experiência que tem mais a aprender com Allende do
que com Che” (Intervenção no seminário do Instituto Lula).
Para o dirigente petista este déficit se
explicaria por uma série de motivos e não pode ser confundido com pouca
produção, mas com sua debilidade. As causas seriam o impacto da
ofensiva neoliberal sobre o pensamento de esquerda (a tripla crise do
socialismo, da socialdemocracia e do nacional desenvolvimentismo) e seu
grande impacto sobre a cultura, a comunicação de massas e a educação; e,
o que considera em primeiro lugar, o deslocamento da classe media
tradicional para posturas “fascistas e esquerdistas”. Uma vez que é nos
setores médios que se encontram a maior parte dos intelectuais isso
teria afetado a produção teórica.
Esta compreensão se aproxima da posição defendida neste blog por Emir Sader (Intelectuais e processos políticos,
Blog da Boitempo de 23/01/2013) quando afirma que “a produção
intelectual foi profundamente afetada por todos estes efeitos”, de
maneira que, segundo seu juízo, os intelectuais latino-americanos não
estariam “à altura desse momento histórico”. Em sua coluna anterior no
mesmo blog, Sader reforçará esta tese afirmando que a separação entre
teoria e prática afetou seriamente a produção intelectual e a capacidade
de intervenção na realidade por parte dos intelectuais, concluindo que
“a esquerda passou a estar marcada por uma teoria sem prática e por uma
prática sem teoria” (Intelectuais e política,
Blog da Boitempo de 24/10/2012). Sader empenha suas esperanças em
Haddad e Pochmann como intelectuais que combinariam teoria e prática.
O grande pecado desta intelectualidade
conservadora (acompanho Leandro Konder em sua preocupação de não
banalizar o termo fascista) e aquela anatematizada como “esquerdista” é
que não souberam compreender verdadeiramente o profundo significado dos
“processos progressistas e de esquerda em curso na America Latina” e, em
especial, na experiência de governo petista no Brasil.
Valter Pomar, que dedicadamente resiste
na posição de defensor de um “horizonte socialista”, buscando se
diferenciar daqueles que hoje no PT se limitam a buscar formas de
gerenciamento do capitalismo, é mais critico e prudente. Ainda que
defendendo a experiência petista como positiva por ter “melhorado a vida
do povo, recuperado o papel do Estado e adotado uma política de
integração regional”, mantém seu senso crítico caracterizando o governo
Lula como “um governo de centro-esquerda, [que] melhorou a vida dos
pobres e garantiu grandes lucros aos ricos” (Entrevista ao jornal Página 13).
Em síntese o que preocupa nossos
companheiros é que a intelectualidade não se seduziu pela experiência
petista a ponto de produzir reflexões teóricas que iluminassem os pontos
indicados por Pomar no sentido de superar este déficit. Tal fato tem
uma explicação mais simples do que julga nosso companheiro. Deixemos os
conservadores de lado por um tempo, ainda que haja entre eles os que se
seduziram pelo petismo moderado, mas uma boa dose de preconceito de
classe e a pobreza do irracionalismo pós-moderno seria o bastante para
delimitar o alcance e a relevância da produção crítica de molde
conservador.
Em relação à intelectualidade de
esquerda as coisas não são bem assim. Há uma intelectualidade “petista”
ou simpática à experiência em curso, mas mesmo esses não têm se
empenhado em análises profundas sobre tal experiência, salvo raras e
honradas exceções, principalmente se esperamos destas análises os
efeitos almejados por Pomar, isto é, que nos ajudem a compreender o
capitalismo contemporâneo e, à luz do balanço das experiências de
esquerda e de centro-esquerda, pensar os caminhos estratégicos para o
Brasil. Entre esses parece haver uma postura cautelosa, isto é, não
analisemos muito a fundo porque podem aparecer contradições que sirvam
aos adversários para atacar a experiência em si positiva.
Não há pensamento crítico que resista a
tal cautela e a experiência do pensamento oficial das experiências
socialistas deveriam ter nos ensinado isso.
Mas, há também uma intelectualidade de
esquerda crítica à experiência petista e caracterizá-la em bloco como
“esquerdista” se tem alguma função defensiva na luta política imediata
não serve de muita coisa na compreensão séria do problema. Estou
convencido que é aí que, inclusive os intelectuais petistas sérios que
não se renderam ao coro laudatório do governismo emburrecedor, poderiam
encontrar um bom campo de diálogo que lhes mostrasse os limites e
debilidades da experiência em curso. Mas, Narciso continua achando feio o
que não é espelho.
Ao que parece, o juízo de esquerdismo se
aplica mais ao cálculo da ação política, mais precisamente, quanto à
desconsideração da real correlação de forças, da definição do inimigo
principal e das alianças necessárias e possíveis, colocando, como é da
característica do esquerdismo, o objetivo final no lugar da ação tática.
Da mesma forma, é característico de todo
reformismo, esquecer o objetivo final e se render ao pragmatismo
imediatista, sempre ancorado na justificativa da correlação de forças e
da “arte do possível”. Como já disse Lukács se há um movimento para o
qual o pragmatismo (a realpolitik) é nefasta, esse movimento é o socialismo.
Como já proclamou Engels em certa
ocasião, o que falta a esses senhores é dialética. O objetivo final sem
tática, ou uma tática que não leva ao objetivo final transformado em uma
virtualidade nunca realizável.
Concordando com os termos da necessidade
do debate sobre a estratégia da transformação social no Brasil e na
América Latina apontado por Pomar, não posso concordar com seu ponto de
partida ao utilizar a imagem de uma contraposição entre Che e Allende.
Devemos desculpá-lo a princípio pelo fato de ser a transcrição de uma
fala em um seminário na qual pesa mais o recurso de oratória do que a
precisão da análise, mas creio que ela revela algo mais fundamental.
A real polêmica para quem pensa
seriamente o Brasil e o mundo hoje não é a velha contraposição entre uma
ação revolucionária direta, seja armada ou insurreicional, ou um longo
processo de reformas moderadas que iria minando a ordem o capital por
dentro até que houvesse correlação de forças suficientes para uma
passagem pacífica ao socialismo.
Estou profundamente convencido que temos
muito a aprender com a experiência da unidade popular no Chile,
principalmente por sua capacidade de incorporação das massas
trabalhadoras com uma clara direção de classe, na sua incrível ação
cultural que de tão forte resistiu à ditadura e renasce hoje vivificada
pela juventude. Da mesma forma que sua experiência de governo, se bem
estudada, comprovará que foi muito além dos limites rebaixados de um
reformismo que se rende à política do possível e covardemente se esconde
atrás de uma correlação de forças desfavorável para buscar formas
modernas de gerir a barbárie capitalista.
No entanto, contrapor a riqueza da
experiência chilena ao pensamento e a prática política de Ernesto Che
Guevara é um equívoco que só atualiza a pobreza da contraposição
mecânica à qual nos referíamos. Deixemos que o comandante nos diga o que
pensa.
Ao analisar a possibilidade de
desenvolvimento de uma estratégia revolucionária na América Latina, Che
ressalta que há países nos quais o desenvolvimento de uma economia
industrial, de uma urbanização e do desenvolvimento de instituições
políticas mais estáveis, levaria à percepção de que seriam possíveis
mudanças estruturais pela via do acúmulo de representantes no parlamente
ou vitórias eleitorais. Diante disso reflete:
“A qualidade de um revolucionário se
mede pela capacidade em encontrar táticas adequadas a cada mudança de
situação, em ter sempre em mente as diferentes táticas possíveis e em
explorá-las ao máximo. Seria um erro imperdoável descartar por princípio a participação em algum processo eleitoral.
Em determinado momento ele pode significar um avanço do programa
revolucionário. Mas seria imperdoável também limitar-se a esta tática
sem utilizar outros meios de luta, inclusive a luta armada, como
instrumento indispensável para aplicar e desenvolver o programa
revolucionário”. (grifos nossos)
Logo em seguida, em uma antecipação impressionante dos fatos que ainda se dariam no Chile de Allende, nos diz:
“Quando se fala em alcançar o poder pela
via eleitoral, nossa pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular
ocupa o governo de um país sustentado por ampla votação popular e
resolve em consequência iniciar as grandes transformações sociais que
constituem o programa pelo qual se elegeu, não entrará imediatamente em
choque com os interesses das classes reacionárias desse país? O exército
não tem sido sempre o instrumento de opressão a serviço destas classes?
Não será então lógico imaginar que o exército tome partido por sua
classe e entrará em conflito com o governo eleito? Em consequência, o
governo pode ser derrubado por meio de um golpe de estado e aí recomeça
de novo a velha história; ou, outra solução, é que o exército opressor
seja derrubado pela ação popular armada em defesa de seu governo”. (Cuba: exceção histórica ou vanguarda na luta contra o colonialismo?)
Ora, a questão de fundo que aqui se
apresenta e precisa ser enfrentada por qualquer um que pense seriamente a
realidade brasileira na perspectiva da transformação é a questão da
ruptura e esta não pode ser pensada em toda sua dimensão sem encararmos a
questão do Estado. A ilusão da estratégia dominante em nosso período
consiste na crença de que é possível mudar ou neutralizar o caráter de
classe de um Estado pela ocupação de espaços gerenciais e governativos
da maquina política burguesa sem que ao mesmo tempo sejamos obrigados a
dar as respostas às condições necessárias à perpetuação da acumulação de
capitais.
Uma política de massas orientada
politicamente para a ruptura, uma ruptura sustentada por uma ação
política de massas. Eis os termos da questão. Che teria o que aprender
com Allende, mas Allende teria algumas coisas a aprender com Che. E nós…
ora, nós temos muito que aprender com os dois.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço
Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de
Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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