A ofensiva que a ditadura da burguesia tem em curso significa que decidiu prescindir da variante social-democrata, atropelando o que a própria burguesia apelidava de “estado de direito”, liquidando direitos, intensificando brutalmente a exploração, e aprovando medidas de cariz repressivo e fascizante.
Nesta situação, aumentam as condições objetivas para a compreensão, por parte da grande massa dos trabalhadores e das camadas pobres, de que é necessário derrotar o capitalismo, a ditadura da burguesia, e lutar por uma alternativa: o socialismo. E aumenta a responsabilidade das personalidades e forças políticas e sociais de massas progressistas (de que se destaca o movimento operário e popular) na criação das condições subjetivas para o desenvolvimento dessa luta.
Na luta de classes que a atual crise de sobreprodução capitalista (para a procura solvente) tem vindo a agudizar, é cada vez mais invocado, por personalidades e forças de diversos quadrantes da burguesia (e, mesmo, de organizações de trabalhadores), o chamado Estado social, seja como manifestação de nostalgia por um “paraíso perdido” – apresentado como o fim da história da organização estadual em termos de melhores condições de vida e de trabalho –, seja como objetivo de luta apontado à classe operária e aos trabalhadores.
Em paralelo, também é muitas vezes invocado para desmascarar a hipocrisia daqueles que diziam defendê-lo, mas logo o postergaram quando o capital exigiu o aprofundamento da exploração para manter e aumentar a sua concentração e centralização.
Convém, por isso, balizar o que se quer dizer quando se utiliza o conceito de Estado social. Desde logo, a própria denominação potencia a confusão, pois incute a ideia de que existirá um Estado não social, o que é um tanto incongruente – o mesmo se pode dizer relativamente ao conceito de economia social, que ciclicamente é invocado como meio de superar o caráter predador do capitalismo.
Assim, partimos do entendimento comum de que o Estado social é um Estado capitalista com (de facto, forçado a ceder) direitos sociais para os trabalhadores e para as camadas pobres – por exemplo, nas remunerações, na saúde, na educação, ou na segurança social. Quer dizer; um Estado que se baseia na exploração individual do trabalho coletivo, mas que é obrigado a aceitar determinados limites e a atribuir algumas compensações sociais.
A concepção de Estado como “nação politicamente organizada”, que defende, de forma imparcial e neutral, os interesses de todo o povo – definição paradigmática assumida pelo manual de Organização Política e Administrativa da Nação (a então conhecida OPAN), durante o período fascista – deixou praticamente de ter defensores assumidos, pelo menos publicamente.
Mas é comum a conceção daqueles que, embora admitindo que o Estado não é completamente neutro, consideram que também não está ao serviço dos dominantes (por regra, evitam falar em classes). Por exemplo, para Pierre Bourdieu, conhecido sociólogo francês, que critica o dito processo de involução neoliberal nos EUA e na Europa, o Estado é um lugar de conflitos … mas «entre os ministérios financeiros e os ministérios “gastadores”, encarregados dos problemas sociais», e, assim, «o movimento social pode encontrar apoio nos responsáveis pelas pastas sociais, encarregados da ajuda aos desempregados crónicos, que se preocupam com as ruturas da coesão social, com o desemprego, etc., e que se opõem aos responsáveis pelas finanças, que só querem saber das coerções da “globalização” [1]».
Claro que sempre existem (ou há a suscetibilidade de existirem) contradições internas num governo – que devem ser aproveitadas pelos trabalhadores na sua luta por melhores condições de vida e de trabalho e por uma sociedade sem exploração –, mas isso não põe em causa a política global por ele prosseguida, que é a de defender a classe ou classes que o sustentam; em última análise, os ministros recalcitrantes vão para a rua.
Nós partilhamos a conceção de que o Estado é um instrumento de dominação e opressão de uma(s) classe(s) sobre outra(s) classe(s) – uma ditadura (no sentido marxista-leninista), portanto, da classe que domina sobre a classe dominada [2].
Em «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Engels refere que “O Estado não é, portanto, de modo nenhum um poder imposto de fora à sociedade e tão pouco é “a realidade da ideia ética”, “a imagem da razão” como afirma Hegel. Ele é antes um produto da sociedade num estádio determinado de desenvolvimento; é o reconhecimento de que esta sociedade está enredada numa insolúvel contradição consigo própria, que se cindiu em oposições inconciliáveis de que ela é incapaz de se livrar. No entanto, para que essas oposições, classes com interesses económicos em conflito, não se consumam em si próprias e à sociedade numa luta estéril tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade para abafar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da “ordem” [3]».
Mais sinteticamente, Lenine escreve que «O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe» e «surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas [4]».
Por isso, o Estado capitalista – baseado na apropriação individual do resultado do trabalho social, em que a classe dominante é a burguesia, dona dos meios de produção – é sempre utilizado para impor os interesses da burguesia aos interesses dos trabalhadores (ditadura da burguesia). Aquela quer cada vez mais lucros e estes melhores condições de vida e de trabalho e, quando atingem consciência de classe, uma sociedade onde não haja exploração.
Claro que esta ditadura da burguesia pode tomar formas diversas, desde o fascismo à chamada social-democracia, que se assume como “incorporadora” de causas sociais caras aos trabalhadores e “superadora” das contradições de classe. É esta última forma de dominação da burguesia que também é apelidada de “Estado social”, ou “Estado de bem-estar”, ou “capitalismo de rosto humano”.
Por sua vez, aos trabalhadores não é indiferente a forma de dominação da burguesia, pois o grau de violência e o terror fascistas, com a negação de direitos e liberdades fundamentais e não hesitando mesmo em utilizar o assassinato como arma política, torna ainda mais difícil o desenvolvimento do esclarecimento, da organização e da luta dos trabalhadores e das camadas populares por uma sociedade progressista.
Então, pode perguntar-se, qual a razão por que a ditadura da burguesia assume uma forma em determinado momento e outra em momento diferente? E a resposta tem forçosamente de considerar que a razão determinante, entre outras de caráter conjuntural, objetivo ou subjetivo (que podem ter maior ou menor influência), é a da relação política de forças, a nível nacional, primeiro e a nível internacional depois. No mundo atual, com a globalização e o domínio económico-político dos monopólios transnacionais, a que os média não escapam, cada vez mais o nacional e o internacional se inter-relacionam e se interpenetram.
Daqui resulta que o chamado Estado social/social-democracia mantém a natureza exploradora do capitalismo, mas foi obrigado pela relação política de forças, a nível interno e externo, a fazer cedências à classe operária e aos trabalhadores. Isto é, o Estado social é uma ditadura da burguesia com uma relação de forças que lhe é em grande medida desfavorável; e que, perante a relação de forças antagônica entre o trabalho e o capital e em determinadas condições de desenvolvimento das forças produtivas, teve de dar melhores salários e mais direitos aos trabalhadores. Foi o que aconteceu no período pós-Segunda Guerra Mundial até à derrota da URSS e dos países socialistas de leste, no início dos anos 90 do século passado, período em que os trabalhadores conquistaram importantes direitos sociais e melhores condições de vida e de trabalho. Porém, com a derrota do socialismo nesses países e uma relação de forças diferente, a burguesia está agora a atacar e espoliar os trabalhadores e os povos desses direitos e condições de vida, para impor um violento retrocesso social e civilizacional, fazendo jus à sua natureza de classe e ao objetivo último do capital: a maximização do lucro.
Ora, está a fazer escola o apelo ao estado social por parte daqueles que querem enclausurar dentro dos limites do capitalismo os objetivos da luta de classe dos trabalhadores por uma sociedade onde não exista a exploração do homem pelo homem. E também por outros que se deixam embalar por esta música, que se pode traduzir assim: “podem” lutar por melhores condições de vida e de trabalho dentro do capitalismo, mas afastem essa ideia de o superar e pôr fim à exploração.
Hoje, no turbilhão de uma crise cíclica de sobreprodução capitalista, a nível global, a ditadura da burguesia está a proceder à alteração da forma dita social-democrata do seu exercício para uma forma de aprofundamento da exploração, com a retirada de direitos fundamentais dos trabalhadores, atropelando o que a própria burguesia apelidava de estado de direito e aprovando medidas de cariz repressivo e fascizante.
Sobressai assim, de forma cada vez mais evidente, o caráter explorador, desumano e violento do capitalismo e a utilização da sua crise para avançar para formas de ditadura da burguesia cada vez mais retrógradas, reacionárias e repressivas. E isto é assim, sejam quais forem os partidos burgueses que sustentam os respetivos governos e as denominações que adotam – socialista, social-democrata, popular, democrata-cristão, liberal, trabalhista, “de esquerda” (com aspas, claro), conservador, nacionalista ou outra – como se prova com o exemplo de Portugal e dos outros países da UE.
Nesta situação, aumentam as condições objetivas para a compreensão, por parte da grande massa dos trabalhadores e das camadas pobres, de que é necessário derrotar o capitalismo, a ditadura da burguesia, e lutar por uma alternativa: o socialismo. E aumenta a responsabilidade das personalidades e forças políticas e sociais de massas progressistas (de que se destaca o movimento operário e popular) na criação das condições subjetivas para o desenvolvimento dessa luta.
Por isso, apelar à manutenção ou à luta pelo Estado social e não apresentar como alternativa a superação do capitalismo, tem como consequência a desmobilização dos trabalhadores da luta por este objetivo.
Por outro lado, credibiliza a consideração de que a ditadura da burguesia, na sua forma de social-democracia/Estado social é o fim da linha da luta dos trabalhadores e das forças progressistas por uma sociedade mais justa.
O alinhamento com algumas conceções e definições que se tornaram lugares comuns por imposição da ideologia dominante, em nome do politicamente correto, não contribuirá certamente para a criação das condições subjetivas necessárias à luta por uma sociedade socialista, que as condições objetivas existentes potenciam.
Daí a importância de colocar como objetivo da luta de massas a superação do capitalismo, que terá de incorporar: a conquista do poder de Estado, a nacionalização dos setores básicos da economia e a planificação económica central para satisfação das necessidades dos trabalhadores e das massas populares. Só a interiorização e assunção da necessidade e possibilidade de obter estes objetivos, num período de tempo maior ou menor, criará as condições subjetivas que perspetivem a superação da barbárie capitalista.
Lisboa, 5 de Março de 2012
Notas:
[1] Pierre Bourdieu (1930-2002): «O mito da “mundialização” e o Estado social europeu» – intervenção efetuada na GSEE (central sindical reformista do setor privado da Grécia), em Atenas, em 1996, p. 48 – http://www.mediafire.com/?weie0zs9k8rcmdd.
[2] Sobre esta matéria, ver o opúsculo “A Questão do Estado Questão Central de Cada Revolução”, de Álvaro Cunhal, Edições Avante, 1977 (extraído de O Militante n.º 152, de novembro de 1967).
[3] Friedriech Engels: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, em Obras Escolhidas de Marx-Engels, em 3 tomos, Edições Avante, 1985. t. 3, p. 366
[4] V. I. Lenine: “O Estado e a Revolução”, em Obras Escolhidas de V. I. Lenine, em 3 tomos, Edições Avante, 1978, t. 2, p. 226.
[1] Pierre Bourdieu (1930-2002): «O mito da “mundialização” e o Estado social europeu» – intervenção efetuada na GSEE (central sindical reformista do setor privado da Grécia), em Atenas, em 1996, p. 48 – http://www.mediafire.com/?weie0zs9k8rcmdd.
[2] Sobre esta matéria, ver o opúsculo “A Questão do Estado Questão Central de Cada Revolução”, de Álvaro Cunhal, Edições Avante, 1977 (extraído de O Militante n.º 152, de novembro de 1967).
[3] Friedriech Engels: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, em Obras Escolhidas de Marx-Engels, em 3 tomos, Edições Avante, 1985. t. 3, p. 366
[4] V. I. Lenine: “O Estado e a Revolução”, em Obras Escolhidas de V. I. Lenine, em 3 tomos, Edições Avante, 1978, t. 2, p. 226.
* Presidente da Mesa da Assembleia-Geral do Sindicato dos Trabalhadores da Atividade Financeira (SINTAF)
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